quarta-feira, 19 de junho de 2024

Kaputt Carros Blindados Cães Vermelhos Concurso de Leitura no qual aprovados eram fuzilados Alemães e Russos na Segunda Guerra Mundial


CÃES VERMELHOS

Fazia vários dias que chovia e o mar de lama da Ucrânia subia lentamente no horizonte. Já a guerra relâmpago, a Blitzkrieg, terminara.
A guerra vencida terminara, agora começava a guerra perdida.
Eu via nascer no fundo dos olhos mortiços dos oficiais e dos soldados alemães a mancha branca do medo. 
À medida que o medo crescia, os alemães começaram a matar os prisioneiros que não podiam caminhar, começaram a queimar aldeias que não conseguiam entregar as quantidades de trigo e de gado requisitadas.
E  quando começaram a escassear os judeus, principiaram a matar os camponeses, pendurando-os pelo pescoço ou pelos pés aos galhos das árvores, nas pequenas praças das aldeias.
Um belo dia, os alemães começaram a caçar os cães.
Aqueles pobres cães mestiços.
Os mais ferozes nessa caçada eram os soldados dos tanques, os Panzerschutzen.
A princípio, pensei que se tratasse de um caso de hidrofobia. Depois, percebi que devia haver outro motivo.
Mal entrávamos numa aldeia, antes ainda da caçada aos judeus, começava a caçada aos cães.
Os pobres bichos fugiam, buscando se esconder. Os alemães iam no encalço deles, entrando nas casas, expulsando-os de seus esconderijos e matando-os a tiros e coronhadas.
Os ucranianos, sentados diante das portas das casas, riam à vontade, batendo com as mãos nos joelhos, dizendo pobres cães, rindo gaiatamente, como se tivessem pena não daqueles pobres bichos, mas daqueles pobres alemães. 
Mas por quê?
Eram os cães antitanque soviéticos; ensinados pelos russos a buscar seu repasto no ventre dos carros de combate. 
Não era algo novo, pois Pavlov, um fisiologista russo, já tinha criado, no início do século XX, uma forma de condicionar o comportamento de cães.
Cães eram então levados para a linha de frente...
E mantidos em jejum um ou dois dias.


A matilha esfaimada corria veloz para buscar o seu alimento debaixo dos Panzer alemães.
Esses cães famintos traziam nos corpos mochilas carregadas de explosivos, com uma antena de contato ereta sobre as costas.


Assim que os Panzer apareciam na planície, os russos gritavam "pachol", "pachol" (pega, pega!), e os cães saiam em busca dos tanques, metendo-se debaixo deles, os quais iam pelos ares, explodindo.
Modernas armas de combate explodidas por cães famintos.
Quando tiverem matado todos...
Quando não houver mais cães...
Os meninos russos vão meter-se debaixo dos tanques alemães.


Diante disso, um alemão disse: "São todos da mesma raça. Todos filhos de cães, e afastou-se cuspindo no chão com profundo desprezo.  

APROVADOS NUM CONCURSO E FUZILADOS EM SEGUIDA:


Em áreas ocupadas pelo exército alemão na URSS, os prisioneiros russos eram submetidos a um concurso de leitura. 
Os prisioneiros russos recebiam um jornal, do qual deveriam ler um texto da forma mais correta possível.
Aos prisioneiros, era dito que:
Aqueles que conseguissem ler o texto de forma correta, seriam encaminhados para um trabalho mais suave, de escrevente num escritório do exército alemão.
Quem fosse reprovado, teria que fazer trabalho braçal, sob o sol, sob a chuva, sob a neve, como, por exemplo, construir estradas.
Acreditando nessa história, os prisioneiros se esforçavam na leitura. Os aprovados, comemoravam. Os reprovados, ficavam cabisbaixos e macambúzios. 
No final, a verdadeira razão desse concurso vinha à tona.
Os aprovados eram colocados a marchar rumo a uma cerca, diante da qual se perfilavam. Em seguida, um pelotão das SS, situado defronte a eles, abria fogo, fuzilando todos os prisioneiros russos letrados.
Os reprovados, analfabetos, sobreviviam.
O objetivo dos alemães era decapitar os elementos pensantes da Rússia. Ler bem era um perigo para o regime nazista. Quem sabia ler, provavelmente, deveria ser um membro do Partido Comunista.
A seguir, um trecho do Livro Kaputt, no qual Curzio Malaparte, que foi testemunha de um desses concursos, numa área da Ucrânia ocupada pelos alemães, relata o que abaixo segue:

"Ach so _ disse o Sonderfuhrer de Melitopol perto de mim _ é preciso limpar a Rússia de toda essa cambada de letrados. Os camponeses e os operários que sabem ler e escrever bem demais são perigosos. Todos comunistas.
_ Naturlich _ respondi_mas na Alemanha todos, operários e camponeses, sabem ler e escrever perfeitamente.
_ O povo alemão é um povo de elevada Kultur.
_ Naturalmente _ respondi _ o povo alemão é um povo de elevada Kultur.
_ Nicht wahr? _ disse rindo o Sonderfuhrer; e encaminhou-se para os escritórios do comando.
Fiquei sozinho no meio do pátio, diante dos prisioneiros que não sabiam ler direito, e tremiam como varas verdes." (página 219, Kaputt, Curzio Malaparte, editora Civilização Brasileira, 1970)

Fontes: 
Kaputt, Adaptação e arte Guazzelli da Obra Kaputt de Curzio Malaparte, editora Martins Fontes, 2014.
Kaputt, Curzio Malaparte, editora Civilização Brasileira, 4º edição, 1970.


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