Curzio Malaparte estava numa região no norte da URSS, na frente de Leningrado, ocupada pelos nazistas. Ele viajava de carona num carro do exército alemão, tendo ao seu lado o Tenente Schultz.
Atravessavam uma densa floresta coberta pela neve.
No decorrer de um diálogo entre Curzio e Schultz, descobrimos que os alemães, no norte da URSS, usavam cadáveres congelados de soldados soviéticos como placas sinalizadoras de trânsito. Schultz, além de não demonstrar nenhuma empatia em relação aos soldados soviéticos, ainda fazia pilhéria da situação, enquanto Curzio demorava para compreender que realmente estava diante de seres humanos congelados, usados como "policiais de trânsito" ou como placas de sinalização de trânsito.
Abaixo, o diálogo entre Curzio Malaparte e Sch, retirado do livro Kaputt:
"Nesse momento, enquanto a floresta era mais cerrada e profunda, e uma estrada atravessava a nossa, vi surgir de repente no nevoeiro, lá longe, diante de nós, no cruzamento das duas estradas, um soldado imerso na neve até à barriga: estava em pé, imóvel, com o braço direito estendido a indicar-nos o caminho. Quando passamos na frente dele, , Schultz levou a mão à pala do quepe como para saudá-lo e agradecer-lhe. Depois disse:
_ 'Aí está outro que iria de bom grado para o Cáucaso _ e desatou a rir, recostando-se pesadamente na almofada do carro.'
Após outro trecho de estrada, noutro cruzamento, eis que aparece ao longe outro soldado, também imerso na neve, com o braço estendido.
_ 'Morrerão de frio, esses coitados, disse eu.'
Schultz virou-se para me olhar:
_ Não há perigo que morram de frio, disse, e ria.
Perguntei-lhe então por que julgava que aqueles coitados não corriam perigo de morrer congelados.
_'Porque, agora, já estão acostumados ao frio, respondeu Schultz, e ria batendo-me com a mão no ombro. Mandou parar o automóvel e virou-se para mim, sorrindo:
_ 'Quer vê-lo de perto? Assim poderá perguntar-lhe se está com frio.'
Descemos do carro, aproximamo-nos do soldado: lá estava ele, em pé, imóvel, com o braço direito estendido a nos indicar o caminho. Estava morto. Tinha os olhos esbugalhados, a boca entreaberta. Era um soldado russo morto.
_ 'Eis a nossa polícia de trânsito, disse Schultz; nós a chamamos a polícia silenciosa.
_ 'Tem certeza que não fala?'
_ 'De que não fala? Ach so! ExperimentE interrogá-lo.
_ 'É melhor não experimentar; tenho a certeza de que me responderia, retruquei.'
_ 'Ach, sehr amusant!, exclamou Schultz, rindo.
_ 'Ja, sehr, amusant, nicht wahr? _ Em seguida acrescentei, com ar indiferente: _ Quando os levam para ali, estão vivos ou mortos?
_ 'Vivos, e claro, respondeu Schultz.
_ 'E depois morrem de frio, é claro, observei.
_ 'Nein, nein, não morrem de frio!'
Olhe aqui, e Schultz mostrou-me um grumo de sangue, um grumo de gelo rubro, na frente do morto.
Em seguida, Schultz acrescentou rindo:
_'Afinal, é preciso que os prisioneiros russos sirvam para alguma coisa.'
(páginas 17/18, Kaputt, Curzio Malaparte, 4º edição, Editora Civilização Brasileira, ano 1970.)
Obs.: Curzio Malaparte é o pseudônimo de um jornalista, escritor e diplomata italiano de nome Kurt Erich Suckert (1898 - 1957). Trata-se de um trocadilho com o nome de Napoleão Bonaparte. Nasceu na Toscana, na Itália, de pai alemão e mãe italiana. Foi correspondente durante a 2º Guerra Mundial, de onde extraiu a inspiração para escrever Kaputt.
ANOTAÇÕES EXTRAÍDAS DA LEITURA DOS SEGUINTES LIVROS:
1) Kaputt, Adaptação e arte Guazzelli, da obra de Curzio Malaparte, editora Martins Fontes, 2014.
2) Kaputt, Curzio Malaparte, Editora Civilização Brasileira, 4º edição, ano de 1970
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