Tudo começou num casamento que não deveria ter ocorrido. A mulher se viu sozinha, pai (pedreiro) e mãe (do lar) prematuramente mortos. Morando com a tia, sem emprego, na década de 50, acabou casando-se com seu namorado, indo morar na casa de sua sogra. Vida difícil. Filhos vão nascendo. São três no total. O mais velho, o do meio e o caçula. Mudam de casa. Filhos crescem. A infância é boa. Será aliás, a única parte boa da vida do caçula deles, mesmo que ele já apresente sinal de TOC (transtorno obsessivo compulsivo) e de transtorno de ansiedade. Os pais brigam. O clima não era bom. Casados mas separados sob o mesmo teto. Eles não têm tempo de notar esses problemas no filho caçula, ademais, naquela época, década de 70, ninguém devia ter conhecimento dessas patologias, ao contrário do que acontece hoje. Os irmãos mais velhos saem de casa, para estudar e trabalhar. Ficam na casa o caçula e os dois pais que viviam separados, cada um dormindo num quarto. Na adolescência, ele, o caçula, vive só. Introspectivo, tímido. Ninguém duvida do amor que seus pais devotavam a ele, ao caçula. Nunca lhe faltou nada. Pai e mãe fariam qualquer sacrifício pelo caçula e por seus irmãos. Pagaram faculdade para os três. O pai deles trabalhava num banco. E de um Banco que iria falir, gerando mais sofrimento ainda para ele. A mãe dele ainda teve um derrame. Ele gastou uma nota para mantê-la. Pagar enfermeira, ajudante, etc, por mais de 10 anos. Agora, a mãe dos três meninos, era professora dedicada. Trabalhou de início na zona rural. Numa sala, dava aula para quatro séries, 1º, 2º, 3º e 4º. Além de professora, era merendeira. Depois melhorou um pouco, indo dar aula na escola da cidade. Professora concursada do Estado. Enfim, Mãe e Pai, duas pessoas sérias, honestas e sofridas, que fizeram o que estava ao alcance delas para ajudar seus três filhos, pagando faculdade para todos eles, etc etc. Nunca deixaram faltar nada para os três filhos. Passada a adolescência, a vida adulta não seria melhor para o caçula. O TOC e o transtorno de ansiedade o aprisionavam, impedindo que tivesse uma vida plena e feliz. Mas ele não conseguia se libertar. Só mais tarde iria descobrir o que tinha. Já seria tarde. Apesar de tudo, se formou numa faculdade. O medo sempre o acompanhou. A falta de confiança em si mesmo, idem. Exerceu por algum tempo o serviço para o qual fora formado. Mas daí começou a ter problemas de saúde: psoríase, em razão de nervosismo. Problemas na vista, moscas volantes, uma espécie de degeneração do vítreo, ainda na casa dos trinta anos, quando normalmente isso só acontece depois dos 50 anos. Tive ainda um derrame na mácula do olho esquerdo, que praticamente o inviabilizou para a leitura. Foi mais um azar. Se o derrame tivesse acontecido em outra parte da retina, disse o médico, a capacidade de leitura não teria sido atingida. Bem, isso só piorou ainda mais seu TOC e sua ansiedade. Na sequência, três ataques de Pânico. Mas as coisas ainda iriam piorar para o caçula. Sua mãe era depressiva, acarrentando nela vários problemas de saúde. Quase perdeu uma perna por bobeira. Na sequência, seu pai foi diagnosticado com Mal de Parkinson. Dois anos de sofrimento. Quem cuidava dele? O mais novo dos três irmãos, o caçula. Era sempre o caçula. O pai já estava morrendo, insuficiência cardíaca, pés inchados, água no pulmão. Depois da morte do pai, a mãe começou a ficar doente. Teve uma queda no prédio onde morava. Um enfermeiro vinha todo dia para cuidar dela. Com depressão, ela não se cuidava. Ia ficando cega, tumores iam crescendo no seu rosto e no seu braço. Com ela viviam dois filhos, o mais velho e o mais novo, o caçula. O caçula, coitado, mal podia cuidar da própria vida, imagine se iria conseguir cuidar da mãe. Ele não tinha forças para mudar a trajetória da mãe. Uma pessoa doente cuidando de uma outra pessoa doente. Não tinha como dar certo.Mas mesmo doente, ele, da forma que podia, cuidava dela. Era o companheiro dela e ela era a companheira dele. Ele dizia para ela: "Eu amo a senhora", ao que ela respondia: "Eu amo o senhor." Fazia companhia para ela, mas ela também fazia companhia para ele. E o outro filho dela, o do meio? Bem, esse vivia fora, com outra família. Era quem poderia ter ajudado mais mas não ajudou. Esse irmão do meio era como um expectador numa peça de teatro. Via a peça se desenrolar sem tomar partido de nada, como se ele não fosse também integrante da história. De vez em quando se dignava em descer das cadeiras do teatro, entrava no palco e tentava interferir no andamento da peça. Mas logo voltava para sua posição de mero espectador. Bem, a mãe foi ficando cega, com sinais de senilidade e com seus tumores crescendo no rosto e no braço. O tumor no rosto começou a sangrar. Tinha que operar. E o fez. Deu tudo errado. Mesmo pagando caro, mais de 10 mil reais, não teve o tratamento adequado. Ela morreu, depois de duas semanas de agonia, sem poder se despedir de forma digna de seus dois filhos, o caçula e o mais velho (o do meio nem se deu ao trabalho de vir visitá-la após a operação), que estavam com ela, nos seus momentos finais, nos quais buscava, sem sucesso, respirar. Ela morreu sufocada, nos braços deles. No atestado de óbito constou broncoaspiração. O caçula dela sabia que ela tinha morrido, ali no quarto mesmo. Mas ele estava em estado de choque emocional. No choque emocional, o sujeito fica entorpecido, como que morto, ou surta, começa a berrar, etc. No caso dele, houve entorpecimento, um estado de "não sei o que fazer", diante de tanto sofrimento. Mas ainda houve um toque final de crueldade. Chamaram o SAMU. SAMU chegou e levou ela, que já deveria estar morta, para o Hospital. E não é que o atendende do SAMU esquece um fichário de atendimento no quarto dela? Sim, esqueceu. Depois que levaram ela para o hospital, o irmão mais velho liga para a residência onde estava seu irmão caçula. Pergunta para ele o número do SUS da mãe deles. Nasceu uma esperança no coração do irmão caçula? Se perguntam o número do SUS, então a mãe dele está viva, está sendo atendida? Nada disso. Era só a burocracia brasileira. O telefone toca outra vez e o irmão dele diz do outro lado da linha: "É pra avisar que o cara do SAMU vai passar aí para pegar um fichário de atendimento que ele esqueceu no quarto da mãe. E a mãe faleceu." E foi assim que o filho caçula de três irmãos descobriu que aquela pessoa que conviveu com ele por tanto tempo (51 anos), não existia mais. Ele não a veria mais, não a beijaria mais, não a pegaria mais pelas mãos, não conversaria mais com ela. Mas o caçula, sozinho no apartamento, não podia esquecer de algo importante: pegar o fichário do SAMU e levá-lo lá embaixo do prédio, para entregá-lo ao rapaz ou à moça que viesse pegá-lo. E lá foi ele, com a prancheta com o fichário do SAMU debaixo do braço. Ficou um dez minutos no sereno da noite esperando a ambulância. Antes que a ambulância do SAMU viesse, ele ficou vendo uma moçada se divertindo num posto de gasolina que ficava ali perto. Enquanto uns choram, outros riem. Bem, a ambulância chegou e ele entregou o fichário para a moça do SAMU. E subiu de volta para o apartamento, onde sua mãe não estava mais. Isso é o epítome da solidão, do vazio. Acho que nem a sua própria morte é pior do que vivenciar algo assim. E o outro filho, o do meio, eu ia esquecendo de perguntar. Bem, este nem estava aqui, só apareceu para o enterro. E agora a vida virou um pesadelo sem fim. O caçula é hoje um velho. Sem perspectiva alguma. Mais sozinho do que nunca, exceto pela companhia do irmão mais velho. O irmão mais velho, faça-se justiça, foi quem ficou ao lado do caçula no apoio à mãe, na busca por um médico para operá-la e sofrendo junto nos momentos finais. E com morte da mãe, somado ao seu TOC, que o acompanha desde seu nascimento, o caçula fica emaranhado num círculo vicioso, preso a pensamentos que lhe causam mais sofrimento. Basicamente fica pensando se não seria o culpado pela morte da mãe, se não poderia ter feito, lá atrás, algo que pudesse ter ajudado a sua mãe, de forma que ela tivesse mais alguns anos de vida. O caçula queria que tudo isso fosse apenas um pesadelo, do qual haveria de acordar em algum momento.
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