terça-feira, 30 de junho de 2020

Heréticos O Menino Crucificado Século XVI Judeu como Bode Expiatório


Roma, século XVI.
Um menino é encontrado morto numa cruz.
Era semana de Páscoa.
Judeus são os suspeitos de sempre. Em meio ao populacho corria a história de que os judeus tinham matado e crucificado a criança.
Fatos semelhantes tinham acontecido na Espanha no ano de 1492, quando judeus foram expulsos daquele país.
O caso caiu nas mãos do Papa Marcelo II. A cidade de Roma estava em polvorosa com o assassinato. A população acreditava que os judeus eram culpados pela morte do menino, pois celebravam a Páscoa com o ritual de assassinar uma criança cristã, crucificando-a.
A população queria expulsar os judeus de Roma. Queria também matá-los e saquear seus bens.
O Papa Marcelo II delegou a investigação do assassinato para o Cardeal Alessandro Farnese.
Incumbido da investigação, o Cardeal Alessandro Farnece foi averiguar o ocorrido. Chegando ao local dos fatos, se deparou com o menino assassinado preso a uma cruz. A população de Roma se fazia presente, instigada por Alessandro Fanseschi, um judeu convertido, que discursava acusando os judeus pelo assassinato, já condenando-os de antemão.
O Cardeal Fanese se dirigiu a Alessandro Fanseschi, vendo no zelo deste pela sua nova religião, o cristianismo, algo de vulgar, "assim como as injúrias que invectivavam a sua antiga identidade (judaica)" (página 70).
Fanese repreendeu Fanseschi pela forma como ele agia, condenando os judeus de antemão, instigando a população a agir contra a comunidade judaica.
Faneschi retrucou a reprimenda sofrida, dizendo achar estranho que um Cardeal da Igreja Católica, cuja instituição sempre atacou a comunidade judaica, viesse agora admoestá-lo por acusar os judeus de um assassinato ritualístico.
Ao ouvir a resposta de Fanseschi, o Cardeal Alessandro Fanese intimamente concordou com ela. Mas guardou os pensamentos para si. A Igreja Católica realmente tinha fomentado o ódio aos judeus. Mas o Cardeal só podia pensar essas coisas, não dizê-las. O que ele disse foi para que o judeu convertido se calasse, parando imediatamente de atiçar a população contra os judeus.
Em seguida, Cardeal Fanese foi ao bairro romano onde residia a comunidade judaica. Ali ele se encontrou com representantes judeus e disse que uma investigação seria feita, começando pela busca da identidade da criança assassinada.
No dia seguinte, um médico local descobriu a identidade da criança, como sendo a de um filho de um espanhol. Ao irem à casa desse espanhol, os investigadores encontraram ali outras duas pessoas, um outro espanhol e uma mulher. Esse outro espanhol não era o pai da criança, mas amigo do pai. O pai da criança tinha morrido e passado para ele a incumbência de cuidar dela. Mas o espanhol que foi encontrado pelos investigadores resolveu matar a criança para ficar com a herança dela. E a crucificou para se desvincular do caso, jogando a culpa na comunidade judaica. 
Dessa forma foi reconhecida a inocência da comunidade judaica. O judeus comemoraram.
Os judeus não seriam mais expulsos de Roma. 
Mas o Papa que veio a substituir Marcelo II decretou que os judeus iriam passar a viver confinados num bairro, o Gueto. 


ANOTAÇÕES EXTRAÍDAS DO LIVRO "HERÉTICOS", A HISTÓRIA COMO ROMANCE, DE ANNA FOA, EDITORA EDIÇÕES 70. Capítulo V, O Menino Crucificado, páginas 65/73

terça-feira, 23 de junho de 2020

Sabáudia Savoia Savoie Saboia Reino Desaparecido Origem do Reino da Itália



ORIGEM DO REINO DA ITÁLIA:

O Reino da Itália começou na Sabáudia ou Savoia, ou ainda Savoie (em francês) e Saboia, localizada no que é hoje a França. Sabáudia estava localizada no centro de um entroncamento daquilo que no futuro seria o encontro das fronteiras de três países: França, Itália e Suíça. O seu primeiro governante foi Humbertus/Hupertus I/Humberto, o Mãos Brancas/Umberto Biancamano (980/1047). Humberto, o Mãos Brancas foi o primeiro Conde da Sabáudia. 
O território sobre o qual Sabáudia se assentava abrangia a área do Lago Leman e as zonas alpinas em torno do Monte Branco.
Humberto, o Mãos Brancas, tornou-se Conde da Sabáudia pelas mãos de Conrado II, o Sálico, Imperador do Sacro Império Romano Germânico. Foi um prêmio por Humberto ter lutado contra os inimigos do Imperador, virando conde graças aos bons serviços militares prestados ao Sacro Império Romano Germânico. 
Humberto e os condes que o sucederam eram súdidos do Imperador do Sacro Império Romano Germânico.

"Floresceram recorrendo às estratégias medievais do costume: explorando os seus vassalos, combatendo os seus vizinhos, expandindo seus territórios e fazendo bons casamentos."
(página 471)

Os condes da Sabáudia procuraram se expandir a leste, controlando os desfiladeiros alpinos, aproximando-se da área denominada Piemonte (o Pé dos Montes), localizada na atual Itália. 
Cidades da Sabáudia: Chambery (sua segunda capital), Annecy, Thonon, Bonneville, Moutiers, Saint-Jean Maurienne (seu primeiro centro político), Cournayeur.

ALGUNS CONDES DA SABÁUDIA:

👉Amadeu III (1103-1148): Morreu em Rodes, durante a segunda cruzada
👉Amadeu IV (1343-1383): Foi vitimado pela peste após uma longa carreira militar
👉Pedro II (1263-1268): Expandiu a Sabáudia, conduzindo seus cavaleiros pelo Grande São Bernardo, derrotando o Conde Zahringen, conquistando o Castelo de Chillon, no Lago Leman, partindo depois para conquistar o País de Vaud (onde hoje se situa a cidade de Lausanne, na Suíça). Nessa época das conquistas de Pedro, o País de Vaud pertencia ao Reino da Borgonha, que por sua vez pertencia ao Sacro Império Romano Germânico. 
👉Conde Amadeu VIII (1391-1440): Em 1416, Amadeu ganhou o Imperador do Sacro Império Romano Germânico um novo status: o de Duque. Sua independência formal também foi reconhecida.
Pouco depois disso, Amadou tomou posse de Turim (atual Itália), seu mais rico tesouro. O senhor da Sabáudia era agora também senhor do Estado do Piemonte-Saboia. 

"...governando territórios que se estendiam dos arredores de Lyon à nascente do Ródano, perto de Andermatt, e do Lago de Neuchâtel até o Mar Tirreno."
(página 475)

👉Emanuel Filiberto (1553-1580): Fez da cidade de Turim a capítal do Piemonte-Saboia em 1563.

GUERRAS DA ITÁLIA EM MEADOS DO SÉCULO XVI:

Emanuel Filiberto estava numa posição delicada. Serviu como general nas forças do Sacro Império Romano Germânico, mas estava casado com a irmã do Rei da França. O ducado de Emanuel foi ocupado por tropas francesas. Seu território foi devastado. Em 1557, comandando forças espanholas, Emanuel obteve uma vitória em Saint-Quentin, conseguindo a restituição de seus domínios em 1559, passando a governar de forma absoluta. A partir daí, Emanuel Filiberto passou a adotar o nome italiano de Savoia para denominar a sua dinastia (Casa de Savoia).

ALVORECER DO SÉCULO XVII:

Apesar da adoção no nome italiano de Savoia, havia regiões do Piemonte-Savoia que eram pró-França, como por exemplo a cidade de Annecy. 

CONFLITOS RELIGIOSOS NO PIEMONTE-SAVOIA:

Havia uma comunidade religiosa denominada Valdense ou Vaudense. Era uma comunidade cristão não católica. Enraizada nos Vales Alpinos, uniu forças com os calvinistas. A contrarreforma queria erradicá-los. O carrasco foi o Duque do Piemonte-Savoia, Carlos Emanuel II (1638-1675) que empreendeu um massacre contra a comunidade Valdense.

"Foi um banho de sangue como a Europa não via desde a noite de São Bartolomeu."
(página 477)

NICE/NIZZA:

Nice atualmente é uma cidade francesa, banhada pelo Mar Mediterrâneo. Nos séculos XVI/XVII, Nice pertencia ao Piemonte-Savoia. Carlos Emanuel II viabilizou uma estrada Transalpina através do desfiladeiro de Tende, através do qual a cidade de Nice se unia ao restante do Piemonte-Savoia. Dessa forma, Savoia, Piemonte e Nice estavam ligados economicamente e politicamente.

TRONO REAL PARA A CASA DE SAVOIA:

Vitor Amadeu  II (1675-1730) conseguiu um trono real para a sua dinastia. Vitor Amadeu II se aproveitou da Guerra da Sucessão Espanhola, sendo beneficiado pelo Tratado de Utrecht/Utreque, em 1713, que lhe deu o trono real da Sicília, que pertencia ao reino espanhol. Mas em 1720, pelo Tratado de Haia, após um entendimento com os austríacos, o governante do Piemonte-Savoia trocou a Sicília pela Sardenha. Agora, além de governante da Savoia, do Piemonte e de Nice, o líder da Casa de Savoia também era rei da Sardenha.

A CHAVE PARA A ITÁLIA:

Os territórios governados pela Casa de Savoia eram vistos como a Chave para a Itália. Mesmo não sendo uma potência de primeira linha na Europa, o agora Reino da Sardenha era independente e cortejado por outros países para ser um aliado. No ano de 1750, o Reino da Sardenha (Savoia, Piemonte, Nice e ilha da Sardenha) fazia fronteira com a França (oeste), com a Suíça (norte), com a República de Gênova (sul), com o Mar Mediterrâneo (sul) e com a Lombardia austríaca (leste). 
A residência do Reino da Sardenha ficava em Turim, junto ao rio Pó.
Os reis da Sardenha, senhores de desfiladeiros que ligavam a Itália e a França, se aproveitavam dessa vantagem geográfica, para cobrar taxas dos comerciantes que precisavam atravessá-los para a sua atividade comercial. 

INVASÃO DE NAPOLEÃO:

Tudo corria bem com o Reino da Sardenha durante o século XVIII até Vítor Amadeu III declarar guerra à França revolucionária. O resultado foi desastroso. Napoleão atravessou os alpes em 1796 . Savoia foi anexada pela França. Piemonte virou uma região militar francesa. Nice também foi tomada pelos franceses. O Rei da Sardenha e seu filho tiveram que fugir, exilando-se na Ilha da Sardenha. Napoleão Bonaparte não tinha apreço pela Igreja Católica. Em sua passagem por Savoia, a abadia de Hautecombe foi saqueada e virou uma fábrica de azulejos. 

QUEDA DE NAPOLEÃO E RESTAURAÇÃO DO REINO DA SARDENHA:

Com a derrota de Napoleão e com a realização do Congresso de Viena, o Reino da Sardenha foi restaurado, recuperando seus territórios (Nice, Savoia, Piemonte) e ganhando a República de Gênova. Apesar disso, restaurar o "status quo ante" seria um desafio aos monarcas restaurados, tendo em vista que as ideias da revolução francesa tinham criado raízes por onde passaram. Seria difícil recolocar o gênio da revolução de volta para a garrafa. 

"...a Europa pós-Napoleônica era muito diferente da Europa pré-Revolucionária."
(página 483)

Uma das ideias trazidas pela revolução francesa tinha a ver com a Nação - criação de um Estado-Nação inspirado pelo modelo francês. Na Itália, para que um Estado-Nação fosse criado, divisões teriam que ser enfrentados.

- Norte da Itália: Dominado pelo Império Austríaco (Veneza, Lombardia)
- Centro da Itália: Governado por um conjunto de monarcas reacionários, incluindo o Papa em Roma
- Sul da Itália: Localização do Reino das Duas Sicílias pertencente à Dinastia Bourbon.

PIEMONTE E SABOIA:

Piemonte e Saboia pertenciam ao Reino da Sardenha. Apesar disso, esses dois territórios não eram homogêneos. 
Piemonte flertava com os nacionalistas italianos, que queriam usar o Reino da Sardenha como plataforma de lançamento de uma Itália unificada, ao mesmo tempo contendo os radicais, encorajando o protagonismo dos moderados e buscando negociar com as potências europeias.
Savoia, por sua vez, flertava com uma separação, saindo do Reino da Sardenha, estabelecendo uma administração francesa. Escritores na Savoia buscavam ligar seus habitantes modernos com uma identidade franco-saboiana, dizendo que os habitantes de Savoia que falavam francês estariam ligados a uma tribo celta, os alóbroges, que tinham habitado a região na época dos romanos.

"Allobroges valentes! Nós vossos campos verdes/Dai-me sempre asilo e segurança; Porque gosto de respirar o ar puro de vossas montanhas. Sou a liberdade! A Liberdade." (Joseph Dessay 1817-1870)
(página 484)

GOVERNANTES APÓS A RESTAURAÇÃO DO REINO DA SARDENHA:

- Vitor Emanuel I (1802-1821) 
- Carlos Félix (1821-1831), Il Feroce
- Carlos Alberto (1831-1849) "Introduziu uma administração burocrática e paternalista, à qual chamou Il Buon Governo. " (página 485)

Carlos Alberto, em razão das revoluções de 1848, proclamou uma Constituição liberal, o Statuto Albertino. Essa Constituição, apesar de reservar ao rei todas as decisões executivas, como declarar guerra e paz, garantiu a liberdade de imprensa, a liberdade de reunião, etc.
Apesar dessas concessões liberais, as tensões no reino do Piemonte/Saboia permaneciam. E as tensões eram criadas pelos sentimentos nacionalistas. Na Saboia, havia os francófilos, que desejavam uma aproximação com a França. E no Piemonte havia os italianófilos, que desejavam que o Reino do Piemonte/Saboia fosse uma plataforma de lançamento de uma Itália Unificada. 

PATRONO DO RISORGIMENTO - UNIFICAÇÃO ITALIANA - VITOR EMANUEL II:

O patrono do Risorgimento (Unificação Italiana) foi o rei da Sardenha (Piemonte/Saboia) Vitor Emanuel II (1849-1861 e 1861-1878). Seu Ministro de Negócios Estrangeiros era o Conde Cavour, que dizia ter encontrando uma forma para enganar seus colegas diplomatas: "Digo-lhes a verdade e eles não acreditam em mim." (página 487)

QUESTÃO ITALIANA:

Metternich dissera que a Itália era apenas uma expressão geográfica. Mas isso iria mudar a partir de 1861, com a unificação italiana. Foi um processo longo e doloroso, que precisou da participação de vários atores, dentre os quais citamos:

-Napoleão III, Imperador da França. 
-Cavour, Camilo Benso, Ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino do Piemonte/Saboia e depois Primeiro Ministro.
-Giuseppe Garibaldi, um revolucionário.
-Giuseppe Mazzini, outro revolucionário.
-Vitor Emanuel II, rei da Sardenha (Piemonte/Saboia).

No ano de 1858, em Plombières Les-Bains, nos Vosges, houve um encontro decisivo para a história da Itália, entre Napoleão III e Conde Cavour. Nele ficou acertado que a França ajudaria a expulsar os austríacos do norte da Itália. Em troca, o Reino de Piemonte-Saboia cederia Nice e Saboia para a França.
Cavour "...arriscou a perda de cerca de um terço das possessões do seu soberano na esperança incerta de ganhar algo mais." (página 492)
Esse algo mais que Cavour esperava ganhar era a expansão do Reino da Sardenha em direção da Lombardia e de outros territórios italianos dominados pelos austríacos. 

INÍCIO DA GUERRA:

Junho de 1859: Exército francês avança para o norte da Itália. Batalhas sangrentas se seguiram ao avanço francês: Solferino, Magenta e San Martino. O sofrimento causado nesses combates foi tão grande que levou à criação da Cruz Vermelha. O exército francês contou com a colaboração do exército do reino da Sardenha e dos Caçadores da Itália, que eram formados por voluntários reunidos por Giuseppe Garibaldi. Forças da Sardenha entram em Milão, na Lombardia. Austríacos batem em retirada. 
Mas houve percalços pelo caminho. Napoleão III fez uma paz em separado com a Áustria, sem consultar o Reino da Sardenha. Parecia que Napoleão III não queria a unificação da Itália, com um Reino da Sardenha expandido. Queria apenas uma Confederação Italiana sobre a proteção francesa.

CAMINHO PARA A UNIFICAÇÃO ITALIANA:

Na segunda metade de 1859, os Duques de Parma e Módena, e o Grão-Duque da Toscânia, depois de perderem a proteção da Áustria, foram derrubados por revoluções locais. No Romanha, localizada na parte norte dos Estados Papais, administradores locais do Papa foram expulsos após uma revolta popular. Esses territórios uniram-se num grupo pró-Reino da Sardenha, denominado Províncias Unidas da Itália Central. 
Em 24 de março de 1860 é assinado o Tratado de Turim, no qual fica acertado que França e o Reino da Sardenha iriam fazer Plebiscitos em Nice, na Saboia e nas Províncias Unidas da Itália Central. 

Plebiscito = Scitum Plebis ( escolha do povo)

As populações de Nice e Saboia decidiram pela união com a França. Os habitantes das Províncias Unidas da Itália Central decidiram pela união com o Reino da Sardenha.

FIM DE 8 SÉCULOS DE HISTÓRIA:

Quando o povo de Saboia votou pela união com a França, 8 séculos de história, iniciadas por Humberto, o Mãos Brancas, tinham terminado. A Saboia, embrião de um Reino italiano unificado, deixava de pertencer à Casa de Savoia e agora passaria a pertencer à França.

CASA DE SAVOIA:

A Dinastia da Casa de Savoia perdeu sua ancestral Saboia mas ganhou o reino Italiano, que passou a governar, primeiramente a partir de Turim e depois a partir de Roma. A Casa de Savoia sobreviveu à Primeira Guerra Mundial, enquanto outras dinastias morriam: Hohenzollerns na Alemanha, Romanov na Rússia e Habsburgo na Áustria.

FIM DA CASA DE SAVOIA:

A Casa de Savoia não sobreviveu à derrota italiana na Segunda Guerra Mundial. Num Referendo realizado no ano de 1946, a Monarquia Italiana, sob a Casa de Savoia, deixava de existir. A Itália agora seria uma república. Era o fim da história que tinha sido iniciada por Humberto, o Mãos Brancas.


ANOTAÇÕES EXTRAÍDAS DA LEITURA DO LIVRO "REINOS DESAPARECIDOS, HISTÓRIA DE UMA EUROPA QUASE ESQUECIDA", NORMAN DAVIES, EDITORA EDIÇÕES 70, capítulo 8, Sabáudia, páginas 464/511

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Comunidade Banto Sul de Camarões Migrações para o Sul e Leste da África



MIGRAÇÕES NO INTERIOR DO CONTINENTE AFRICANO:

No que hoje é o sul de Camarões, tem início uma onda de grandes migrações de comunidades de língua Banta, pertencentes a um grupo maior, a nigero-congolesa. O grupo nigero-congolesa ocupava uma área que ia do Rio Senegal, a oeste, até Camarões, a leste (início do IV milênio  a.C.)

Banto: Pessoas
Ba (prefixo) = Plural
NTU = Ser Humano

O grupo linguístico Banto fazia parte de uma família mais ampla, a nigero-congolesa (IV milênio a.C.). Não se sabe as razões dessa migração. O que se sabe é que ela foi descoberta por meio da identificação de elementos da língua Banta no centro sul da África, "mas a pátria original dos povos de língua banta eram as terras altas de Camarões, a mais de 4 mil quilômetros de distância." (página 38)

A Comunidade Banto vivia da agricultura (cultivavam o inhame), da pesca (construíam canoas). Também cultivavam Palmeiras, das quais extraíam azeite de dendê (culturas arbóreas). Veneravam seus espíritos ancestrais. Atravessando a Floresta Tropical, migraram para o sul, atual Congo, onde havia povos coletores e caçadores, os ba-twas - pigmeus (ano 1000 a.C., ano em que a metalurgia chegou à África). O avanço pela floresta ocorria na base de 20 quilômetros por década. Além das florestas do Congo, ficavam as savanas do sul e do leste da África, habitadas por povos caçadores-coletores, que possuíam várias habilidades adquiridas em meio a uma vida itinerante na Savana. Esses povos das Savanas fabricavam ferramentes de madeira, osso e pedra.

OUTRAS MIGRAÇÕES:

"Desde o IV milênio a.C. , o domínio de caçadores-coletores, na África Orienta, atraía vários grupos de migrantes africanos. Do planalto etíope a nordeste, vieram pastores de língua kushita, trazendo gado e habilidades agrícolas; no segundo milênio a.C., eles tinham chegado ao seu limite ao sul, nas planícies do Serengeti, na Tanzânia moderna. Do Vale do Nilo, a noroeste, vieram pastores nilóticos, que plantavam culturas como o sorgo. Mas foi a chegada de migrantes bantos da região da floresta do Congo, a oeste, que produziu o impacto de maior alcance."
(página 40)

Os Bantos se espalharam pela África oriental em direção à costa.

ADVENTO DA TECNOLOGIA DO FERRO:

Meados do Primeiro Milênio a.C.

A metalurgia do ferro foi estabelecida na região entre a Bacia do Chade e os Grandes Lagos da África Oriental. Havia também a atividade de metalurgia na região onde hoje é a Nigéria (planalto de Jos).
Havia também a prática de metalurgia em Djenné-Jeno, no médio Níger.
Lanças e flechas com pontas de ferro e instrumentos agrícolas de ferro aumentaram a produtividade geral. A prática da metalurgia (pelos Bantos de Mashariki) no leste da África (região dos Grandes Lagos) causou uma grande devastação nas florestas locais, derrubadas para a obtenção de carvão vegetal, para a alimentação de fornos para a metalurgia.

MIGRAÇÃO DO POVO BANTO MAIS PARA O SUL DO CONTINENTE AFRICANO (SÉCULO III a.C.): 

O Povo Banto continuou sua migração para o sul do continente africano. Do leste para o sul, empreenderam a migração munidos com utensílios de ferro, trazendo consigo gado bovino e ovino. No século II  d.C. chegaram na moderna província de Natal, na moderna África do Sul. O avanço terminou um pouco antes da Província do Cabo, na moderna África do Sul. 
O intercâmbio com o leste da África resultou na introdução do gado, que depois expandiu para áreas do sul da África. 
O gado adquiriu crescente importância econômica, conferindo ao seu proprietários 'status' e prestígio muito acima daquele desfrutado pelos agricultores. Grupos subiam ao poder pelo domínio de propriedade com rebanho.

"À medida que as comunidades agrícolas iam se fixando, começaram a desenvolver identidades e culturas regionais distintas."
(página 41)


ANOTAÇÕES EXTRAÍDA DA LEITURA DO LIVRO "O DESTINO DA ÁFRICA, CINCO MIL ANOS DE RIQUEZAS, GANÂNCIA E DESAFIOS, MARTIN MEREDITH, EDITORA ZAHAR, Parte 1, A África e o Mundo Antigo, Capítulo 2, Empreendimentos no Interior.

domingo, 14 de junho de 2020

A Rota da Morte e da Destruição. Peste Negra



A ROTA DA MORTE E DA DESTRUIÇÃO:
A peste viria em meio às mercadorias importadas da ásia. 

CIDADES ITALIANAS EM BUSCA DE NOVAS ROTAS COMERCIAIS NO MAR NEGRO:

Com os portos e as cidades do Levante envolvidas em escaramuças entre cristãos e muçulmanos (séculos XII e XIII), as cidades italianas de Veneza e Gênova já vinham buscando alternativas para suas rotas comerciais. Acharam-na na Crimeia (atual Rússia), na foz do Mar de Azov e na cidade Armênia de Ayas (Cilícia). Os barcos venezianos e genoveses compravam alimentos nas margens sul e norte do Mar Negro e vendiam escravos para os mamelucos que governavam o Egito. 
Não havia união entre as cidades italianas, muito pelo contrário. Elas brigavam entre si pelo controle das rotas comerciais. Em 1282, Gênova afundou uma frota de Pisa. Em 1299, o Papa Bonifácio VIII tentou intermediar uma trégua entre as cidades de Veneza e Gênova.
A riqueza dessas cidades-estados italianas vinha da venda de mercadorias do oriente (especiarias, peles das estepes, tecidos, etc). Despachar mercadorias pelo Mar Negro era mais vantajoso pois essa região estava sob o domínio mongol, que cobrava taxas menores (do valor exportado) do que aquelas cobradas no porto egípcio de Alexandria. 

"Como qualquer comerciante sabe, as margens afetam tudo."
(página 205)

PRESENÇA MONGOL NO MAR NEGRO. ESTÍMULO AO COMÉRCIO:

"Assim como as conquistas islâmicas do século VII tiveram profundo impacto na economia global à medida que impostos, pagamentos e dinheiro fluíam em direção ao centro vindo de todos os cantos do mundo, os sucessos mongóis do século XIII também reformularam os sistema monetários da Eurásia."
(página 208)

Outra vantagem da área que circundava o Mar Negro era a presença mongol. A administração mongol tornou o comércio mais seguro. Havia estabilidade; os mongóis eram tolerantes com a religião, respeitando cristãos, budistas, islâmicos. Não perseguiam ninguém em razão de sua fé. Os mongóis ainda eram bons administradores. Seu correio, por exemplo, era eficiente, pois usava estações de revezamento, nas quais mensageiros descansavam e trocavam de cavalo, possibilitando assim a superação de grandes distâncias. Era ainda uma administração que prezava o mérito, premiando os melhores, trazendo as pessoas mais competentes para perto do poder. Em sua expansão, o Império Mongol entrou em contato com muitos povos, administrando-os de forma a desuni-los. O método consistia em misturar os diferentes povos que estavam sob seu domínio, mandando um membro de um povo para longe de sua terra de origem, afastando-o de suas raízes culturais, para servir ao lado de membros de outros povos. Dissolvendo esses laços culturais, os mongóis buscavam também suprimir aspectos tribais distintivos, que diferenciavam um membro de uma tribo de outra. Buscava-se uma padronização em favor dos mongóis e em detrimento de qualquer característica distintiva existentes entre povos e tribos.
A política mongol pretendia com isso dissolver as lealdades originárias, criando somente uma lealdade, que deveria ser devotado somente ao Império Mongol. 

"Por instinto, os mongóis sabiam como construir um grande Império: tolerância e administração cuidadosa tinham que se seguir à supremacia militar."
(página 207)

O mundo no qual os mongóis se expandiram (séculos XIII/XIV) tinha todos os fatores a seu favor. Havia a China com sua riqueza (agricultura e tecnologia) e sua grande população; na Ásia Central havia estados fragmentados, prontos para serem conquistados e unidos sob um império; ainda havia a Ásia muçulmana e a Europa, ambas com poder aquisitivo para comprar produtos que passavam pelo interior do Império Mongol. Enfim, aquele mundo se apresentava aos mongóis como uma fruta madura que pedia para ser colhida e saboreada. 

Os Mongóis e a Rota da Seda:

Os mongóis proporcionavam segurança para os mercadores que transitavam pelo seu território. Obviamente que os mongóis assim agiam porque o comércio os favorecia, por meio do recolhimento de taxas cobradas das caravanas comerciais que passavam pelo seu território. 
O comércio expandia os horizontes. Cidades do leste desenvolviam-se com o comércio de tecidos: Nishapur, Bagdá, Herat e Tabriz. 

"Os horizontes expandiam-se por toda parte."
(página 213)
No sul da China, o porto de Guangzhou ligava o país às rotas comerciais marítimas. Guangzhou tinha se tornado, na década de 1270, o ponto central de exportações e importações marítimas da China. O viajante Marco Polo relatou: " 'Para cada navio que partia de Alexandria com suprimentos de pimenta para as terras cristãs, relatou Marco Polo, no final do século XIII, mais de uma centena entrava no porto chinês.' " (página 214)

"O comércio no Mediterrâneo era grande; o do Pacífico, imenso."
(página 214)

Os mongóis ainda sabiam como usar pessoas de outros povos para seu proveito. Um exemplo foi aquele que iria se tornar Ivan IV, o Terrível. Ivan, no início de sua escalada ao poder, era um vassalo dos mongóis, coletando tributos para eles. Nesse tempo, Ivan era conhecido como Kalita (Ivan Sacolas de Dinheiro). Ao se sujeitar aos mongóis, Ivan foi enriquecendo e cimentando seu poder na embrionária Moscóvia, destacando-se em meio a outros príncipes russos.

"...alguns estudiosos defendem que foi o sistema de governo mongol que constituiu a base para a transformação da Rússia numa autocracia madura por meio do empoderamento de um punhado de indivíduos (por exemplo, Ivan IV) que passaram a dominar a população, assim como seus pares."
(página 208)

A PESTE NEGRA:

Pelas rotas comerciais não fluíam apenas mercadorias. Fluíam também doenças. 

A origem da Peste Negra:

Além de abrigar animais de criação (cavalos, Camelos, cabras, etc) e nômades por milhares de anos, as estepes eurasianas também formam uma das grandes bacias de pragas do mundo, com uma série de focos interligados que se estendem do Mar Negro até a Manchúria, no Pacífico.
A peste negra vinha da bactéria yersinia pestis que, por meio de pulgas, que parasitavam ratos, transitavam depois para um outro hospedeiro, o ser humano, que então era acometido da doença e morria. A pulga pegava a bactéria do rato e depois o repassava para o ser humano. E dessa forma a doença se alastrou, das estepes eurasianas para a Europa, para o Egito, Oriente Médio, Península Arábica, Irã, etc.

"As rotas comerciais que ligavam a Europa ao resto do mundo tornaram-se estradas letais para a transmissão da Peste Negra. Em 1347, a doença chegou a Constantinopla e depois a Gênova, Veneza e ao Mediterrâneo, trazida por comerciantes e mercadores que fugiam de casa. Quando a população de Messina, na Sicília, percebeu que havia algo de errado com os genoveses, que chegavam cobertos de bolhas, vomitando sem parar e tossindo sangue antes de morrer, já era tarde demais, embora as galés genovesas fossem expulsas, a doença se instalou e devastou a população local."
(página 216) 

A peste se espalhou rapidamente a partir de meados do século XIV. 
Em meados de 1348, a peste chegou às cidades do norte da França e da Baviera. Chegou também à Inglaterra, trazida por mercadores e marinheiros. Morria tanta gente que ficava difícil achar gente para enterrar aqueles que tinham morrido (página 217)
Navios que antes traziam bens e artigos de luxo, agora traziam a morte, a peste. 
E não era só a Europa que sofria:

"Em Damasco, escreveu Ibn Al-Wardi, a praga sentou-se como um rei em seu trono e governou com poder, matando todo dia mil ou mais, e dizimando a população."
(página 217)

"As estradas entre o Cairo e a Palestina ficaram cobertas de corpos de vítimas, enquanto os cães rasgavam os cadáveres empilhados contra os muros das Mesquitas em Bilbais."
(página 217)

Em Veneza, 3/4 da população foi dizimada (página 217).

Boccaccio, autor humanista italiano, observou "mais de 100 mil perderam a vida apenas em Florença." (página 217)

As pessoas achavam que o Apocalipse tinha chegado. Buscavam se refugiar na fé. As pessoas rezavam, faziam jejum, procissões; fiéis flagelavam-se. Era uma forma de aplacar a ira divina, da qual suspeitavam ser a fonte da peste. Alguns culpavam as roupas femininas, que seriam ousadas demais e que por isso a ira divina tinha sido despertada.

"Um padre sueco recomendava evitar o sexo e todos os desejos carnais com mulheres..."
(página 218)

Na Alemanha começava-se a culpar os judeus. Acreditava-se que a peste negra tinha sido criada pelos judeus, que teriam envenenado poços e rios com a peste. 

"Era perigoso ter crenças diferentes em tempos de crise."
(página 219)

"A Europa perdeu pelo menos um terço de sua população para a praga, e talvez muito mais, com as estimativas conservadoras do número de mortos apontando algo em torno de 25 milhões numa população total de talvez 75 milhões."
(página 219)

O Mundo foi tomado pelo:

→Medo
→Descrença
→Ansiedade

"Os efeitos foram arrasadores. 'Nossas esperanças de futuro foram enterradas junto com nossos amigos', escreveu o poeta italiano Petrarca. Os planos e as ambições de chegar a maiores descobertas no Oriente e a possíveis fortunas foram ofuscados por pensamentos mais sombrios. O único consolo, prossegue Petrarca, era saber que 'iremos seguir aqueles que foram antes'. 'Não sei quanto tempo teremos que esperar, mas sei que não pode ser muito'. Todas as riquezas do Oceano Índico, do Mar Cáspio ou do Mar Negro, escreveu, 'não podem compensar o que foi levado embora.' "
(página 219)

EFEITOS "POSITIVOS" DA PESTE NEGRA:

Estruturas sociais reconfiguradas: 

O despovoamento causado pelas mortes fez aumentar o valor que se pagava pelo trabalho. Havia escassez de mão de obra: escassez de servo, artesãos, agricultores e lavradores.

"...salários urbanos aumentaram de forma drástica nas décadas que se seguiram a Peste Negra."
(página 220)

"O empoderamento do campesinato, dos trabalhadores e das mulheres foi acompanhado por um enfraquecimento das classes proprietárias, já que os senhores de terras foram obrigados a aceitar o pagamento de alugueis menores por suas posses - e acabavam decidindo que era melhor receber alguma renda do que nada."
(página 220)

Com a renda melhor distribuída, mais gente entrou no mercado consumidor. Esse mercado consumidor ia atrás, por exemplo, de têxteis, o que resultou num maior desenvolvimento dessa indústria na Europa. A Europa passou inclusive a exportar têxteis para o Oriente. E as importações de têxteis da Europa caíram. 

Veneza retomou o comércio:

Veneza retomou seu comércio de especiárias. Importavam especiarias especialmente de Alexandria, no Egito. Veneza então as revendia com um bom lucro. Embarcações que partiam de Veneza iam para diversos lugares: Costa da África, Beirute, Alexandria, terras gregas, sul da França e Flandres.

CHINA - MEADOS DO SÉCULO XIV:

A Dinastia Mongol (Yuan) foi substituída pela Dinastia Ming. A nova dinastia realizou incursões em direção ao Camboja e pelo Sião. Os chineses iam atrás de produtos. Em troca, oferecia a paz. Os chineses ainda buscavam o comércio marítimo com o sul da Índia. A frota naval chinesa era comandada pelo almirante Zheng He. Zheng He buscava abrir rotas comerciais pelo Oceano Índico, pelo Golfo Pérsico e pelo Mar Vermelho. 

TARMELÃO OU TIMUR - SÉCULO XIV - ÁSIA CENTRAL:

A partir da década de 1360, Tarmelão dá início à edificação de um grande Império, que ia da Ásia Menor ao Himalaia. Tarmelão, um guerreiro muito bem sucedido, oriundo do atual Usbequistão, na Ásia Central, esbanjava recursos na construção de palácios. A sua corte ficava em Samarcanda, no atual Usbequistão. O seu dinheiro vinha dos povos que ele tinha conquistado, subjugados. Vivia no luxo, comprava sedas da China. Era uma vida de esbanjamento. 
Tarmelão morreu no início do século XV, em 1405, quando planejava uma invasão à China. Na esteira de sua morte, seu Império se desfez em várias partes. 

CRISE FINANCEIRA GLOBAL NO SÉCULO XV:

No século XV houve uma crise financeira de âmbito global. Havia uma desvalorização monetária. Havia mercados supersaturados. Havia balanças de pagamento desequilibradas (países nos quais os recursos eram todos direcionados para importar produtos, ocasionando uma sangria na riqueza do país). Havia produtos demais para absorver, cujos valores eram altos e para os quais não havia mais dinheiro para adquiri-los. A Europa não tinha mais recursos para continuar importando esses produtos de luxo. 
A China produzia demais para um mundo que não tinha mais dinheiro para adquiri-los. 

"O resultado tem sido descrito com frequência como uma escassez de lingotes de ouro. Hoje, nós a chamamos de escassez de crédito."
(página 226)

Na China, no primeiro quarto do século XV, a bolha de crescimento estourou. A China teve que frear a sua expansão, cortar gastos, como por exemplo suspender as caras expedições navais e suspender a construção de um canal de navegação, que ligaria a sua capital a Hangzhou.

Não havia mais dinheiro suficiente em circulação.
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"...é que os suprimentos globais de dinheiro estavam escassos....mercadores na península Malaia assumiram o problema nas próprias mãos e cunharam uma nova moeda tosca a partir do estanho, do qual havia localmente um suprimento abundante. Mas, em resumo, o suprimento de metal precioso que havia proporcionado uma moeda corrente comum ligando um lado do mundo conhecido a outro - embora nem sempre com padrão de unidade, peso ou excelência - entrou em colapso: não havia dinheiro suficiente em circulação."
(página 227)

ANOTAÇÕES EXTRAÍDAS DA LEITURA DO LIVRO "O CORAÇÃO DO MUNDO, UMA NOVA HISTÓRIA UNIVERSAL A PARTIR DA ROTA DA SEDA: O ENCONTRO DO ORIENTE COM O OCIDENTE", PETER FRANKOPAN, EDITORA CRÍTICA, Capítulo 10: A Rota da Morte e da Destruição, páginas 204/230




sexta-feira, 5 de junho de 2020

Corte Merovíngia Regicídio Konigsnahe Brunilda Maior Domus



TENTATIVA DE REGICÍDIO NUMA CORTE MEROVÍNGIA NO SÉCULO VI:

Não era seguro ser rei num reino franco. No ano de 589 (século VI), na Gália, Childeberto II, rei franco, conseguiu desbaratar uma conspiração que pretendia assassiná-lo. A conspiração foi tramada por poderosos aristocratas, que conviviam na corte com Childeberto II. Desbaratada a conspiração, os aristocratas envolvidos no golpe foram perseguidos, mortos e tiveram seus bens confiscados. Além de Childeberto, sua mãe, Brunilda, também era odiada pelos conspiradores. Brunilda era regente e participava da governação do reino até Childeberto atingir a maioridade. 
Desse episódio (narrado no livro com maiores detalhes), podem ser extraídas as seguintes conclusões sobre o reino Merovíngio:

➧ havia facções na corte merovíngia; a corte não era unida.
➧ rainhas-mães, como Brunilda, tinham poder político.
➧ os grandes aristocratas tinham dinheiro para um exército particular, capaz de conspirar pela derrubada de um rei.
➧ esses aristocratas tinham suas ambições voltadas para a corte régia, das quais eram súditos. conspiravam pois pretendiam substituir o rei por eles mesmos. 
➧ esses aristocratas eram ricos mas não a ponto de terem fortificações privadas, não tinham castelos
"...ao contrário do mundo dos castelos da fase central da Idade Média." (página 176)
➧ o santuário era respeitado, mas se o conspirador procurasse guarida, refúgio em alguma igreja, ele seria retirado dali à força e assassinado. foi exatamente o que aconteceu com os aristocratas que conspiraram contra Childerico II.

MUNDO POLÍTICO MEROVÍNGIO:

"...um mundo em que os reis enfrentavam, de forma sistemática, súditos excessivamente poderosos, que tinham tanto caráter quanto recursos."
(página 176)

A Dinastia Merovíngia governou os francos por 250 anos, até 751 (golpe carolíngio). A denominação "Merovíngia" foi extraída de um obscuro avô Meroveu, que pertencia à família de Clóvis.

"...sua hegemonia deveu-se a Clóvis (481-511). Clóvis, filho de Childerico I - um chefe guerreiro tardo-romano e rei franco assentado em Tournai - subjugou os reis francos rivais que tinham ocupado seções distintas da Gália Setentrional, assim como os chefes militares não francos que viviam no norte."
(página 177)

Clóvis logrou unificar 3/4 da Gália. Converteu-se ao catolicismo. O domínio franco expandia-se par ao reino da Burgúndia e para a Bavária (tribos bávaras, atual Alemanha - Estado da Bavária).  Os alamanos, antes de 550, no vale do alto Reno, já tinham sido dominados por Clóvis, assim como a Aquitânia visigótica, em 507.

"...uma hegemonia franca, porém mais frouxa, foi também reconhecida na Itália setentrional, na Germânia central, no leste da Turíngia, na Bretanha (a única parte da Gália que nunca foi conquistada inteiramente pelos francos), e talvez inclusive em Kent. O núcleo principal das terras francas esteve sempre no norte da Gália, e os principais centros régios estendiam-se de Paris a Orléans, passando por Reims e Metz, até Colônia: Não eram exatamente capitais, no sentido administrativo, mas lugares onde os reis podiam frequentemente ser encontrados..."
(página 177)

Enquanto o rei franco movia-se pelo norte, com sua corte e administradores, o sul da Gália (mais rico e mais romano - página 177) era governado por duques, condes e bispos. A leste do rio Reno, havia duques na Baviera e na Turíngia, com maior liberdade de ação. Era, no início, uma região mais simples, na qual faltava infraestrutura, como por exemplo estradas e cidades.
Os aristocratas no reino franco merovíngio procuravam ficar próximos do rei, esperando algum cargo ou presente. Tudo gerava em torno de dinheiro. Se você tinha acesso ao dinheiro, você teria apoio.
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"Em todos os relatos sobre golpes contra um rei ou sobre rebeliões de seus rivais, durante o século VII, consta a intenção de apoderar-se de um 'thesaurus (Tesouro): era a base essencial para obter o apoio da aristocracia. Carlos Martel ainda fez isso na guerra civil (715-719); nesse sentido, os parâmetros da política não mudaram em absoluto."
(página 186)

As relações de poder no interior de um reino merovíngio se davam basicamente entre o rei e seus magnatas aristocráticos, seculares e eclesiásticos. O Rei ou 'maior domus' relacionava-se com seus administradores da casa ( 'domestici'), pessoas que cuidavam dos documentos do reino (referendaru) e com as pessoas que cuidavam do cofre do reino (thesauraii). Essas pessoas (referendaru, thesauraii e domestici), pela proximidade do poder, eram uma espécie de intermediários (mediadores) entre o rei e quem desejava um favor dele. Esses intermediários eram uma espécie de Patronato romano. Se você vivesse na época do reino merovíngio e precisava de alguma coisa (ser favorecido numa disputa legal, receber uma doação de terra ou um outro favor), iria tentar se aproximar de um desses mediadores.
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Konigsnahe: Palavra alemã designadora de alguém que é próximo ao rei ('conviva regis' - ter o direito de comer com o rei). Essa pessoa, próxima ao rei, poderia interceder a seu favor. 

ORDENS RÉGIAS: COISAS COM AS QUAIS UM REI MEROVÍNGIO SE OCUPAVA:

✏ Nomeação de bispos e condes
✏ Prover alimentação aos mensageiros reais
✏ Cessões de terras
✏ Intimação de um criminoso
✏ Deposição de bispos
✏ Divisão de Propriedade Privada
✏ Restituir uma propriedade que fora confiscada
✏ Pedido para cancelar a realização de um Concílio Eclesiástico porque não foi convidado para ele

ASSEMBLEIAS ('PLACITA'):

Encontros do rei com a sua elite. Compareciam o séquito armado do rei, duques, condes e seus respectivos seguidores. Nessas assembleias tomavam-se decisões, como por exemplo ir à guerra.
Veja que ir à uma guerra era uma "coisa que não estava inteiramente sob controle dos reis.." (página 188)
As elites também usavam essas assembleias para chancelar a ascensão de alguém ao trono merovíngio.

"...em 673, Ebroíno não convocou uma assembleia de aristocratas para reconhecer a subida ao trono de Teodorico III, na Nêustria, e isso os (aristocratas) levou a concluir que ele (Teodorico III) pretendia governar sem consentimento e, por isso, reconheceram em seu lugar Childerico II, da Austrásia."
(página 189)

Nessas assembleias ainda eram decididas disputas legais, cujos vereditos eram cobertos pelo manto da legitimidade. 

"Essas reuniões representavam um elo entre os reis e o povo franco..."
(página 189)

OS ARISTOCRATAS DURANTE A DINASTIA MEROVÍNGIA:

Os aristocratas que cercavam o rei eram ricos. Alguns deles eram muito ricos. Riqueza, leia-se, significava ser dono de terras. Com a terra, o aristocrata comprava uma "comitiva armada, que reforçava ainda mais a sua ambição." (página 190)
As grandes propriedades dessa época se espalhavam por várias partes. Exemplo: o clã aristocrático agilolfingos (mais poderoso no início do século VII) tinha propriedades na Renânia, nas proximidades de Paris, governavam a Baviera, etc. 

Os aristocratas "compartilhavam seus territórios locais com outros (aristocratas). (página 192)

"Isso era muito diferente da aristocracia local assentada em um castelo do século X em diante..."
(página 192)

"O poder não era local e não precisava ser defendido por muitas muralhas; era visto como régio. Ou seja, provinha de um cargo ou da Konigsnahe, e de preferência de ambos."
(página 192)

No início, esses senhores locais não usavam de seu poder para obter uma autonomia. Mas com a involução do poder monárquico, começaram a sonhar com uma fragmentação territorial. Mas os reis de então buscavam evitar essa fragmentação, cooptando os magnatas locais.
De qualquer forma, mesmo com a tentativa do rei de cooptá-lo com presentes ou cargos, um aristocrata podia muito bem ambicionar algo maior, isto é, o próprio trono real. Essa ambição alimentava a criação de facções no interior da corte. 

A CORTE MEROVÍNGIA E O EQUILÍBRIO ENTRE O PODER CENTRAL (REI) E O PODER LOCAL:

Inicialmente, alguém era um sujeito educado e treinado para servir ao rei em sua corte. Esse alguém podia, por exemplo, cuidar do cofre do reino, das finanças do reino (thesaurarius). Esse alguém desempenhou sua função de forma tão perfeita que foi premiado com uma nomeação: foi nomeado Bispo em uma localidade qualquer da Gália. Mesmo que essa localidade ficasse longe do centro de poder, esse Bispo recém-nomeado, que fora antigo funcionário na corte régia, mantinha-se fiel a ela, pois "essas nomeações episcopais...haviam difundido uma consciência e cultura cortesãs em toda a Gália franca." (página 194)
Dessa forma, esse Bispo procedia à administração da cidade, sem perder de vista sua ligação com o rei, com a corte régia, para a qual trabalhara no passado, e graças à qual fora nomeado Bispo. Essa pessoa então tornava-se "embaixador da centralidade régia..." (página 195)
Essa prática mantinha o reino merovíngio unido.
No final do século VII, todavia, "os principados periféricos ganharam autonomia prática e alguns outros duques e bispos buscaram menos patrocínio merovíngio..." (página 195)
Somente na etapa seguinte da história franca, com a ascensão dos carolíngios, a relativa inatividade do governo central seria invertida.

ECONOMIA DURANTE A DINASTIA MEROVÍNGIA:

Os reis merovíngios eram donos de extensas áreas de terra. Tinham acesso a taxas comerciais e judiciais. Controlavam ainda o que sobrara (resquícios) do sistema romano de cobrança de impostos sobre a terra.
A base do Estado estava agora no controle da posse da terra e não mais na cobrança de impostos, prática em desuso. A consequência desse desinteresse pela tributação tinha como consequência a perda de teor de ouro nas moedas merovíngias. 

"...e Clotário II renunciou formalmente ao direito a novos impostos em 614,..."
"...cessões régias de imunidade fiscal para territórios urbanos inteiros estavam começando."
(páginas 185/186)

"Em meados do século VII, as obrigações fiscais parecem ter-se tornado tributos fixos e eram obtidos de áreas cada vez menores."
(página 186)

"É provável que o sistema tributário já estivesse em desuso, tanto que Clotário considerou que valia a pena abandoná-lo, por efeito político..."
(página 186)

Ter extensas áreas de terras substituíam a necessidade de impostos. E o exército não era pago pela corte merovíngia, pois se baseava na "nas obrigações militares dos homens livres." (página 186)
Esses exércitos de homens livres eram formados pelos Aristocratas e seus séquitos (dependentes dele). Eram ainda formados pelos Condes de cidades de seus contingentes. Não tendo que pagar salários para soldados, sobrava dinheiro para o rei merovíngio. Com essa sobre, ele dava presentes para seus cortesãos. Rei e 'maior domus' distribuíam assim presentes aos seus cortesãos. Aristocratas que rodeavam reis e 'maiores domus' esperavam sempre ganhar algo em troca de seus serviços.

REI MORTO, TERRA DIVIDIDA ENTRE SEUS FILHO:

Quando um rei da dinastia Merovíngia morria, suas posses eram divididas entre seus filhos, de maneira uniforme. Foi isso que aconteceu após as mortes de Clotário I, com Clóvis e com Dagoberto I (séculos VI e VII). 

"...viam o ato de governar como uma questão suficientemente familiar a ponto de, com a morte do rei, as terras francas serem uniformemente divididas entre seus filhos."
(página 178)

Dessa forma, com a morte de um rei merovíngio, cada filho ficava com uma porção de reino. Como por exemplo, após a morte de Chilperico (561-584), seu filho Clotário II assumiu um reino no noroeste; no nordeste, Sigeberto I e seu filho Childeberto II assumiram o domínio; e na Burgúndia, Gontrão assumiu a chefia da região. 

MORTE DE CLÓVIS - 511 (SÉCULO VI):

O período que se seguiu à morte de Clovis foi caracterizado pela luta entre seus filhos e por conquistas externas. Esse período teve alguns destaques, como a da época do rei Teodeberto I (533-548), na qual moedas de ouro foram cunhadas com seu retrato e nome.

"...essas são as primeiras moedas bárbaras que reivindicava essa prerrogativa imperial, e os romanos do oriente ficaram muito ofendidos."
(página 179)

DUQUE:

Eram poderosos aristocratas que recebiam do rei merovíngio o título de Duque, uma espécie de comandante de exército, com uma missão regional, cuidando da segurança e da administração de uma determinada área do reino. O rei merovíngio Teodeberto I (533-548) estabeleceu a família franco-burgúndia dos agilolfingos como duques da Baviera. Quando esses aristocratas não conseguiam um cargo de Duque, buscavam cargos na corte régia.

PODER FEMININO NA CORTE MEROVÍNGIA:

A Rainha-mãe (mãe de um futuro rei) podia exercer a governança do reino enquanto seu filho não atingisse a maioridade. Brunilda era mãe de Childerico. Brunilda era uma princesa visigoda, que foi influente durante toda a vida de seu filho Childerico e ainda após a morte dele. Foi regente dos descendente de Childerico. 

"Em 613, Brunilda, com 70 anos, havia angariado muitos inimigos, particularmente no Reino do Nordeste, agora conhecido como Austrásia, que ela acabara de recuperar à força. Clotário II, que até então havia sido confinado a uns poucos territórios urbanos da Nêustria, no noroeste, formou uma coalização de aristocratas e derrubou Brunilda. Ele a fez ser despedaçada em público por um cavalo, em um ato claramente concebido para marcar um novo começo, e ele e seu filho, Dagoberto I (623-639), governaram um reino mais ou menos unitário durante uma geração."
(página 181)

Recapitulando: Um reino com muitos senhores. Um rei morria e o reino era dividido entre seus filhos. 

Childerico I, um chefe guerreiro tardo-romano e rei franco assentado em Tournai. Seu filho veio a se tornar Clóvis de Tournai (481-511). Clóvis de Tournai derrotou o remanescente do Império Romano do 
Ocidente na Gália, então comandado por Sigário. Venceu ainda os Alamanos e os Visigodos do Reino de Tolosa (Toulouse), na batalha de Voillé, em 507. Clóvis morreu em 511. Com sua morte, o reino franco foi dividido entre seus 4 filhos. Era um reino único dividido entre quatro reis. Apesar dessa divisão, a unidade da sociedade franca se mantinha intacta (identidade franca + identidade galo-romana). Os quatros filhos de Clóvis deram prosseguimento à expansão do reino franco. Os francos criaram uma centralidade política, que ia de Paris a Colônia (atual Alemanha). Foi o Primeiro povo a governar ambos os lados da fronteira renana (rio Reno). Em 558, o reino franco foi reunificado, após a morte de 3 dos quatro filhos de Clóvis. No entanto, o filho sobrevivente de Clóvis,  Clotário I, dividiu-o outra vez. Em 561, com a morte de Clotário I, o reino franco foi dividido entre seus quatro filhos.

Brunilda ➧mãe de Childeberto II (575-596): Sigeberto I (561-575) tinha sido o marido de Brunilda. Childeberto II morreu em 596, mas sua mãe, Brunilda, continuou ativa na política merovíngia. Tornou-se regente de dois filhos menores de Childeberto, Teodorico II da Burgúndia e, depois, de seus bisneto, até 613, quando foi apeada do poder por Clotário II.

Gotrão (561-593) Líder na Burgúndia. Em determinado momento da história, era o único rei merovíngio adulto vivo. Tornou-se patrono de seus dois sobrinhos, Childeberto, cuja mãe era Brunilda, e Clotário II, cuja mãe era Fredegunda. 

Chilperico (561-584) e seu filho Clotário II (584-629) inicialmente no noroeste. Seu reino era o menor de todos. Não tinha fronteiras externas, razão pela qual buscava lutar contra seus irmãos. Clotário II estava confinado a uns poucos territórios urbanos na Nêustria.

Sigeberto I e seu filho Childeberto governavam o nordeste, que era o antigo reino de Teodeberto, localizado na parte nordeste do reino Merovíngio, denominada Austrásia. Manteve a hegemonia na Germânia Central e Meridional.

Em 613, como dito acima, Brunilda foi derrubada por Clotário II. A partir daí, Clotário II e seu filho Dagoberto I governaram um reino mais ou menos unitário. Unitário, mas com três cortes (o reino franco foi dividido de maneira geográfica, e não apenas de forma genealógica), cada uma delas com um sub-rei: 
➧ Nêustria (Nova Terra)
➧ Austrásia (o leste, a Pátria)
➧ Burgúndia

Cada uma dessas cortes "também tinha um único chefe aristocrático, um 'maior domus', chefe da casa real (o prefeito do palácio), de acordo com a tradução inglesa." (página 181)

O Prefeito do Palácio era uma função disputada pelos aristocratas. Até guerras eram travadas em torno dessa posição de 'maior domus'. 
Com a morte de Dagoberto I, ele foi sucedido por Sigesberto III (639-656) na Austrásia  e Clóvis II (639-657) na Nêustria, ambos menores. Sigesberto III e Clóvis II também foram sucedidos por menores. A mulher de Clóvis II, Batilda, tornou-se regente de seus filhos menores. Batilda entrou em conflito com o 'maior domus' da Nêustria, Ebroíno. 
Com efeito, a  governação se dava por regência, como no caso de Batilda, o que criava instabilidade, criando-se dois polos antagônicos: a regente (rainha-mãe) de um lado e o 'maior domus' de outro lado.
Com o passar dos anos, o poder de fato passou para os 'maiores domus', notadamente para uma família da Austrásia, os Arnulfingos-Pipinidas - início do século VIII. Era o início do fim da Dinastia Merovíngia. Os reis merovíngios já vinham perdendo força:

"Quando Childerico II (662-675) mandou amarrar e açoitar um aristocrata chamado Badilo em 674 - coisa pouca para os antigos reis - , isso foi considerado um comportamento ilegal e, aparentemente, o próprio Bodilo mandou matar o rei e a rainha em 675, precipitando uma grave crise."
(página 183)

Os merovíngios tinham cedido poderes demais aos aristocratas em troca de apoio. A tensão entre o rei e seus aristocratas/'maior domus' era constante. 

"Do meu ponto de vista (do autor do livro, Chris Wickham), o final do século VII, de fato, marca uma diminuição considerável da centralidade especificamente régia."
(página 183)

A perda do poder se deu a favor do 'maior domus', que agora escolhiam e controlavam os reis.

"Os reis continuavam a ser um polo de convergência para as facções aristocráticas, e suas cortes permaneciam fundamentais  para as aspirações políticas aristocráticas, mas os maiores (domus) e os bispos políticos se tornavam os principais protagonistas."
(página 184)

PEPINO II:

'Maior Domus', originário da Austrásia, vindo de uma rica e influente família da região de Liège, no Meuse.
Em 687, os austrasianos derrotaram os neustrianos na Batalha de Tertry. A partir dessa batalha, Pepino II se tornou o 'maior domus' de todas as terras francas.
Ainda uma nova guerra entre austrasianos e neustrianos acabou com a vitória dos austrasianos, sob o comando de Carlos Martel, um filho ilegítimo de Pepino II. Carlos Martel tornou-se 'maior domus' (717-741). A corte de Nêustria foi abolida e foi inaugurada a dinastia Carolíngia.



ANOTAÇÕES EXTRAÍDAS DA LEITURA DO LIVRO "O LEGADO DE ROMA, ILUMINANDO A IDADE DAS TREVAS, 400-1000, CHRIS WICKHAM, EDITORA UNICAMP, IMPRENSA OFICIAL, GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
Parte II, O Ocidente Pós Romano, 550-750, Capítulo 4, A Gália Merovíngia e a Germânia 500 - 751

terça-feira, 2 de junho de 2020

Queda do Império Romano do Ocidente não foi um Evento Inevitável



FIM DA UNIDADE POLÍTICA DO IMPÉRIO ROMANO DO OCIDENTE:

O Império Romano do Oriente (Constantinopla) se distanciava do combalido Império Romano do Ocidente (Roma, Trier, Ravena), tornando-se mais grego em sua cultura oficial; as leis agora eram em grego. 
No ocidente, há o fenômeno da Provincialização no final do século V. Essa provincialização foi consequência e causa da ruína do Império Romano do Ocidente.

COMO OS CONTEMPORÂNEOS VIAM O IMPÉRIO ROMANO DO OCIDENTE NO SEU OCASO:

Agostinho (autor de Cidade de Deus) considerava o Império Romano em seu conjunto. Outros só conheciam partes dele, como Salviano, que só conhecia a Gália, mas levava em conta "as imagens morais do Império, porém apenas as do Ocidente" (página 148)

Sidônio: "...era definitivamente um Gaulês. Por essa época, as elites gaulesas raramente viajavam para a Itália; mesmo que Sidônio tenha sido o Prefeito de Roma, em 468, ele foi o primeiro gaulês a ocupar esse cargo desde pelo menos 414, e também foi o último."
(página 148)

O centro do poder romano estava distante de suas províncias, alienando-as. Isso levou ao Provincialismo. Se a pessoa não tinha esperança de ascender no centro do Império Romano, ela iria concentrar suas energias na província na qual vivia. Era melhor ascender ao poder em sua província, em sua área de origem, pois não havia chances de ascender em Roma. Havia uma preferência pelo local (província) em detrimento da hierarquia do Império. Os horizontes dos habitantes do Império se estreitavam, não indo além de sua Província. 

"Uma cultura política comum pode ter sobrevivido, porém em cada antiga região ou província romana; seus pontos de referência foram se tornando cada vez mais locais e seus direcionamentos logo iriam começar a divergir."
(página 148)

A QUEDA DO IMPÉRIO ROMANO DO OCIDENTE NÃO FOI UM EVENTO INEVITÁVEL:

A queda do Império Romano do Ocidente poderia ter sido evitado. 

"A civilização romana não pereceu de morte natural. Foi assassinada." (André Piganiol - citado na página 153)

O Império Romano do Ocidente foi substituído por uma série de reinos independentes que não reivindicavam a autoridade imperial. Uma minoria dessas entidades políticas reproduziu as estruturas de governação romana. 

"Trabalhos recentes têm, de fato, representado os novos grupos étnicos em termos bem romanos."
(página 153)

Com o perecimento do Império Romano do Ocidente, houve uma simplificação econômica no ocidente. As construções ficaram menos ambiciosas. A produção artesanal ficou menos profissional. O comércio tornou-se local. 
Os Imperadores no século V, em sua maioria, eram fantoches sustentados por poderosos militares ( Estilicão, Aécio, Ricímero, Gundobaldo, Orestes, etc). A maioria deles não assumia o trono porque era composta por bárbaros étnicos (essa é uma das hipóteses). 
Outra hipótese para que esses poderosos militares não assumissem eles mesmos o trono imperial dizia respeito à sua genealogia, que não lhes davam legitimidade. 
De toda forma, era comum que bárbaros participassem da vida romana, principalmente no exército. Esses bárbaros buscavam se adequar ao mundo romano e mesmo após o colapso dele, buscavam se valer de suas estruturas para sustentarem seus próprios projetos de poder. 
Alguns líderes bárbaros, na esteira da ruína do Império Romano do Ocidente, como Odoacro e Teodorico, que governavam a Itália, tiveram sob seu governo várias etnias: romanos, godos, gépidas, hunos, rúgios, etc. 
Os bárbaros que assumiram as províncias ocidentais as renomearam:
- A Gália passou a ser Regnum Francorum
- A África passou a ser o Regnum Vandalorum

ETNOGÊNESE:

O elemento étnico é flexível. As pessoas dessa época acabavam se adaptando aos seus novos senhores e  a situações que lhe eram impostas.

"É esse o processo que foi chamado de etnogênese por Herwig Wolfram e sua escola: o reconhecimento de identidades étnicas são flexíveis, maleáveis, construções situacionais; o mesmo bárbaro, na Itália do século VI, podia ser rúgio, ostrogodo e até mesmo romano (mas isso somente a partir da reconquista romano-oriental). Tais povos teriam adquirido diferentes identidades sucessivamente (ou contemporaneamente), e essas teriam trazido diferentes modos de comportamento e lealdades, e até, eventualmente, diferentes memórias."
(página 157) 

"Como Walter Pohl propôs recentemente, o 'núcleo de tradições' que fazia alguém ostrogodo ou visigodo era, provavelmente, uma rede de crenças contraditórias e mutáveis; não parece ter havido um conjunto estável de tradições em cada grupo quando cruzaram a fronteira para prestar um serviço descontínuo no exército romano, até se tornarem um assentamento em uma província romana. Em 650, todo reino 'bárbaro' tinha suas próprias tradições, algumas delas remetendo a um passado secular; tradições essas que, sem dúvida, nessa época, eram elementos centrais dos mitos fundadores de muitos de seus habitantes."
(página 157)


MUDANÇA NA FORMA DE MANTER UM EXÉRCITO:

Com a queda do Império Romano do Ocidente, houve uma mudança na forma de se manter os exércitos. O exército pago sai de cena e entra o exército com terras.
O exército não seria mais mantido por meio de tributação. No passado, o Imperador Romano arrecadava tributos e por meio deles sustentava seu exército. A partir da queda do Império Romano do Ocidente, o sustento de um exército seria retirado da terra.

"...através de rendas derivadas da propriedade privada, o que era essencialmente produto desse desejo por terra que as elites conquistadoras demonstravam."
(página 161)

"Os maiores reinos pós-romanos ainda cobravam impostos no século VII. Mas se o exército tinha terras, o principal gasto do orçamento romano não existia mais."
(página 162)

Com o exército sendo sustentado pela terra, a administração nos reinos pós-romanos tornou-se menor e mais barata. 

"Os impostos ainda enriqueciam os reis e sua generosidade aumentava o poder de atração das cortes régias. Mas isso somente por volta de de 550. Essas taxas são sempre impopulares, e coletá-las demanda trabalho; se não forem essenciais, esse trabalho tende a ser negligenciado. Assim, não é surpreendente que existam crescentes sinais de que eles não eram assiduamente cobrados."
(página 162)

Na Gália no ano de 580, o imposto existente era na base de 1/3 do que existia na época do Império Romano. Na África vândala, a organização tributária tinha sido negligenciada.

"Os impostos, por assim dizer, não eram mais a base do Estado. Para os reis, assim como para os exércitos, a posse de terras era a maior fonte de riqueza dali em diante."
(página 162)

Nesse novo mundo, o exército tornava-se mais difícil de controlar. Quando os soldados recebiam um salário do rei, tornavam-se dependente dele. Agora não era mais assim, nesses reinos pós-romanos. 
Nesse novo mundo a quantidade de terras nas mãos do rei também diminuía, pois ele tinha que distribuí-las para comprar a lealdade de um exército. 

"Os Estados cuja base é a propriedade de terra correm o risco de se fragmentarem, de fato, pois seus territórios periféricos são difíceis de dominar totalmente e podem separar-se por completo."
(página 163)

Por outro lado, os Estados que arrecadavam tributos mantinham funcionários espalhados pelo reino. Esses funcionários eram assalariados e dessa forma dependentes do rei, atuando em nome dele em áreas que ficavam distantes da corte.

Resumo: Nos reinos pós-romanos houve uma transição da taxação para a distribuição de terra. Ao mesmo tempo, verificou-se uma retração econômica: havia menos trocas comerciais; produção artesanal menos profissional; 


ALGUMAS NOVIDADES TRAZIDAS PELOS 'BÁRBAROS PARA OS REINOS ROMANO-GERMÂNICOS:

- Consumo excessivo de carne
- Assembleias Públicas: Reunião de homens adultos e livres para decidir sobre política e guerra. Nessas Assembleias também eram discutidas propostas de lei disputas eram arbitradas. 
- Esses homens adultos e livres tinham obrigações militares

No decorrer do século V, chefes bárbaros adaptavam-se ao mundo romano. As elites romanas, por sua vez, também se adaptar à nova realidade.
Nas províncias romanas conquistadas pelos bárbaros, a elite bárbara assumia a condição de governante, imitando a forma como os aristocratas romanos agiam durante a expansão romana. A elite bárbara deitou a mão em grandes propriedades de terras. 

A ELITE BÁRBARA:

As elites dos reinos pós-bárbaros não eram tão ricas quanto as elites romanas. A elite do Império Romano valia-se da unidade proporcionada por um Império, que possibilitava ter terras em locais distantes.

"...a complexidade econômica dependia da unidade imperial."
(página 164)

Houve também uma mudança na aristocracia. Na época do Império Romano, a aristocracia era composta, em sua maioria, por civis. Com a entrada das elites bárbaras, a aristocracia passou a ser mais militarizada.
E fora da carreira militar, havia a Igreja, cuja riqueza atraia os aristocratas.

"Ser um bispo era, algumas vezes, uma opção de aposentadoria..."
(página 166)

POR QUE O IMPÉRIO ROMANO DO OCIDENTE DESAPARECEU ENQUANTO O IMPÉRIO ROMANO DO ORIENTE PERMANECEU?

As fronteiras do Império Romano do Ocidente eram mais visadas e expunham mais seu centro de poder. Se as fronteiras no norte da Gália, no Danúbio fossem rompidas, o centro de poder estaria exposto. Por outro lado, no Império Romano do Oriente, ataques nos Bálcãs não chegavam em Constantinopla, deixando o resto do Império em paz.

➤ Outros motivos:

Povos Bárbaros Federalizados:

Os romanos do Império Romano do Ocidente geralmente aceitavam que grupos bárbaros entrassem em seu território, na condição de Federados. Num primeiro momento essa política funcionou, como no caso dos Visigodos que se instalaram na Gália (Toulouse - futuro Reino de Tolosa, atual França). Mas o plano de receber bárbaros como Federados desandou com o passar do tempo. Federados tornavam-se inimigos. Territórios cedidos aos bárbaros deixavam de arrecadar tributos que deveriam ser canalizados para o exército romano. 

Perda das Províncias africanas:

Outro duro golpe para o Império Romano do Ocidente foi a perda da África do norte (atuais Argélia, Tunísia) para os vândalos, em 439 (século V). As províncias do norte da África eram o celeiro do Império Romano do Ocidente, fonte de exportação de cereais. A perda dessa província empobreceu ainda mais o Império Romano do Ocidente, de forma que agora havia menos dinheiro para manter o exército romano.

Provincialização da Política:

Elites locais romanas agora não olhavam mais para o centro de poder do Império. Buscavam ascender em sua província, deixando de lado a ambição por ascender no centro de poder do Império. Os horizontes das elites provinciais tinham se estreitado. Para essa elite, o mundo agora era a sua província, não mais o Império. Com o tempo, essas mesmas elites passaram a lidar com as elites bárbaras assentadas em suas províncias, deixando de lado o relacionamento com as elites romanas. A realidade era que o equilíbrio do poder tinha mudado.

Enquanto isso, o Império Romano do Oriente, com seu centro de poder em Constantinopla, sobreviveu e ainda experimentou alguns momentos de bom desenvolvimento durante o século VI e início do século VII. A coisa degringolou no Império Romano do Oriente a partir de 618, quando seus territórios ricos em alimentos, no Egito e no Levante, foram perdidos, primeiro para a Pérsia, depois para a expansão do Islã. 

ANOTAÇÕES EXTRAÍDAS DA LEITURA DO LIVRO "O LEGADO DE ROMA, ILUMINANDO A IDADE DAS TREVAS, 400-1000, CHRIS WICKHAM, EDITORA UNICAMP, IMPRENSA OFICIAL, GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, capítulo 3, Crise e Continuidade, 400-550.