sábado, 18 de dezembro de 2010

AUSÊNCIA CHEIA





A CHÍCARA

Chícara posta sobre a mesa.
Ela traz em sua alça
a nostalgia dos dedos.
É preciso muita mão
para alçar
a chícara à altura dos
seus penedos.
Não que o penedo seja
alguma
montanha que se busca.
A questão não é assim 
difusa.
Antes de tudo,
há a chícara em si:
é porcelana, é louça?
É plataforma de formas
sobre o pires?
É a borra de café que
pousa para a leitura
dos elixires
de alguma sorte
sem rumo?
A chícara em si é e não é
o dado bruto de um
vácuo, cujo núcleo
não é o mundo
vago de uma sede vaga
e seca.
O oco da chícara dita
outra regra
sobre a mesa:-
a regra da ausência cheia
que, vazia, se preenche
por si mesma.

Autor:
Mário Chamie.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Quando a existência torna-se expiação


"O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Não há princípio que não seja desmentido nem instituição que não seja escarnecida. Já se não crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta a cada dia. A agiotagem explora o juro. A IGNORÂNCIA PESA SOBRE O POVO COMO UM NEVOEIRO. O número das escolas é dramático. A intriga política alastra-se por sobre a sonolência enfastiada do país. NÃO É UMA EXISTÊNCIA; É UMA EXPIAÇÃO. Diz-se por toda a parte: O país está perdido. Por isso, começamos a apontar o que podemos chamar de o progresso da decadência."
José Maria de Eça de Queiroz, 1871 (Esse texto foi extraído de uma crônica de Arnaldo Jabor, publicada no jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, em 16.11.2010, CADERNO 2, página D10

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Trata-se de um texto escrito por Eça de Queiroz no qual ele traça um panorama do que era Portugal no século XIX. Acredito que essa descrição se coaduna com o que é o Brasil de hoje.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Passarinho


Sabe que uma vez vi no chão um passarinho doente. 
Estava frio e, para aquecê-lo, peguei um punhado de esterco que estava no jardim e o cobri com ela.
O passarinho melhorou e ficou tão quente e feliz que começou  piar.
Então, eis que surge um gavião...que ouviu os pios e deu um rasante e abocanhou o passarinho.
Moral da estória:
Nem sempre quem te põe na merda é seu inimigo e nem sempre quem o tira é seu amigo.
E o mais importante de tudo:
Passarinho que está na merda não dá um pio.

sábado, 22 de maio de 2010

Profecia



Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski, Profecias de Ivan Fiodorovich:

Quando a humanidade, sem exceção, tiver renegado Deus, então cairá por si só, sem antropofagia, toda a velha concepção de mundo e, principalmente,  toda a velha moral, e começará o inteiramente novo. Os homens se juntarão para tomar da vida tudo o que ela pode dar, mas visando unicamente à felicidade e alegria neste mundo. O homem alcançará sua grandeza imbuindo- se do espírito de uma divina e titânica altivez, e surgirá o homem deus.Vencendo,a cada hora, com sua vontade e ciência, uma natureza já sem limites, o homem sentirá assim e a cada hora um gozo tão elevado que este lhe substituirá todas as antigas esperanças no gozo celestial. Cada um saberá que é plenamente mortal, não tem ressurreição, e aceitará a morte com altivez e tranquilidade...”

quarta-feira, 31 de março de 2010

DA HUMANA CONDIÇÃO


CUSTA O RICO A ENTRAR NO CÉU


(AFIRMA O POVO E NÃO ERRA).


PORÉM MUITO MAIS DIFÍCIL


É UM POBRE FICAR NA TERRA.


Mario Quintana.


Amigo


DO AMIGO


Olha! É como um vaso


De porcelana rara o teu amigo.


Nunca te sirvas dele...Que perigo!


Quebrar-se-ia, acaso...


Mario Quintana

Coleção Melhores Poemas, Seleção Fausto Cunha, http://www.globaleditora.com.br/

2005, 17º edição

sábado, 27 de março de 2010

DO ETERNO MISTÉRIO


"UM OUTRO MUNDO EXISTE...UMA OUTRA VIDA..."


MAS DE QUE SERVE IRES PARA LÁ?


BEM COMO AQUI, TUA ALMA ATÔNITA E PERDIDA


NADA COMPREENDERÁ


Mario Quintana


Coleção Melhores Poemas, seleção Fausto Cunha, editora global editora, 17º edição, São Paulo, 2005, página 78.

sábado, 13 de março de 2010

Buliçosas.............................................................................................................


"Eu vi duas borboletas amarelas pousadas no muro da tarde.


A borboleta maior enfiou numa coisa fininha que nem tripa de lambari


na borboleta menor.


Ambas tremeram de amor durante.


Depois voaram buliçosas pelas ruas do jardim."


Manoel de Barros.

Cuiabá(MT)

Livros:

Menino do Mato

Poesia Completa

(Editora Leya)

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Da vez primeira em que me assassinaram


Da vez primeira em que me assassinaram




Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...




Depois, de cada vez que me mataram...




Foram levando qualquer coisa minha...






E hoje, dos meus cadáveres, eu sou




O mais desnudo, o que não tem mais nada...




Arde um toco de vela, amarelada...




Como o único bem que me ficou!






Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!




Ah! desta mão, avaramente adunca,




ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!






Aves da Noite! Asas do Horror! Voejai!




Que a luz, trêmula e triste com um ai,




A luz do morto não se apaga nunca!



Mario Quintana

Coleção Melhores Poemas, Seleção Fausto Cunha.

Editora Global Editora, 17º edição, São Paulo, 2005, p. 26


sábado, 20 de fevereiro de 2010

ERRADOS RUMOS


A caminhada....

Amassando a terra.

Carreando pedras.

Construindo com as mãos

sangrando

a minha vida.


Deserta a longa estrada.

Mortas as mãos viris

que se estendiam às minhas.

Dentro da mata bruta

leiteando imensos vegetais,

cavalgando o negro corcel da febre,

desmontado para sempre.


Passa a falange dos mortos...

Silêncio! Os namorados dormem.

Os poetas cobriram as liras.

Flutuam véus roxos

no espaço.


Na esquina do tempo morto,

a sombra dos velhos seresteiros.

A flauta. O violão. O bandolim.

Alertas as vigilantes

barroando portas e janelas

cerradas.

Cantava de amor a mocidade.


A estrada está deserta.

Alguma sombra escassa.

Buscando o pássaro perdido

morro acima, serra abaixo.

Ninho vazio de pedras.

Eu avante na busca fatigante

de um mundo impreciso,

todo meu,

feito de sonho incorpóreo

e terra crua.


Bandeiras rotas.

Desfraldadas.

Despedaçadas.

Quebrado o mastro

na luta desigual.


Sozinha...

Nua. Espoliada. Assexuada.

Sempre caminheira.

Morro acima. Serra abaixo.

Carreando pedras.


Longa procura

de uma furna escura

fugitiva me esconder,

escondida no meu mundo.

Longe...longe...

Indefinido longe.

Nem sei onde.


O tardio encontro...

Passado o tempo

de semear o vale

de colher o fruto.

O desencontro.

Da que veio cedo e do que veio tarde.


A candeia está apagada.

E na noite gélida

eu me vesti de cinzas.


Restos, Restolhos.

Renegados os mitos.

Quebrados os ícones.

Desfeitos os altares.

Meus olhos estão cansados.

Meus olhos estão cegos.

Os caminhos estão fechados.


Perdida e só...

No clamor da noite

escuto a maldição das pedras.

Meus errados rumos.

Apagada a lâmpada votiva,

tão inútil.



Cora Coralina.


Anna Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas nasceu na cidade de Goiás, a 20 de agosto de 1889, na "Casa da Ponte". Hoje, sob o nome de Museu Casa de Cora Coralina, recebe turistas de todo o Brasil e do exterior. Morreu em Goiânia, a 10 de abril de 1985.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Mario Quintana


ENVELHECER



Antes, todos os caminhos iam.


Agora todos os caminhos vêm.


A casa é acolhedora, os livros poucos.


E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas




SEMPRE


Sou o dono dos tesouros perdidos no fundo do mar.


Só o que está perdido é nosso para sempre.


Nós só amamos os amigos mortos


E só as amadas mortas amam eternamente.



INSCRIÇÃO PARA UMA LAREIRA


A vida é um incêndio: nela


dançamos, salamandras mágicas


Que importa restarem cinzas


se a chama foi bela e alta?


Em meios aos toros que desabam,


cantemos a canção das chamas!



Cantemos a canção da vida,


na própria luz consumida...



Mario Quintana
Coleção Melhores Poemas, Seleção Fausto Cunha, global editora, 17º edição, São Paulo, 2005, páginas 115, 101 e 69.


http://www.globaleditora.com.br/


Mario (de Miranda) Quintana nasceu em Alegrete/RS, a 30 de julho de 1906. O poeta faleceu em 1 de maio de 1994. É detentor de vários prêmios literários. Seu primeiro livro de poesia surgiu em 1940, A Rua dos Cataventos.

ESTE QUARTO


ESTE QUARTO


Para Guilhermino Cesar



Este quarto de enfermo, tão deserto


de tudo, pois nem livros eu já leio


e a própria vida eu a deixei no meio


como um romance que ficasse aberto...



que me importa este quarto, em que desperto


como se despertasse em quarto alheio?


Eu olho é o céu! imensamente perto,


o céu que me descansa como um seio.



Pois só o céu é que está perto, sim,


tão perto e tão amigo que parece


um grande olhar azul pousando em mim.



A morte deveria ser assim:


um céu que pouco a pouco anoitesse


e a gente nem soubesse que era o fim...


Mario Quintana

Coleção Melhores Poemas, Seleção Fausto Cunha, global editora, 17º edição, São Paulo, 2005, página 53.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

O DIA SEGUINTE AO DO AMOR




O DIA SEGUINTE AO DO AMOR


Quando a luz estender a roupa nos telhados

E for todo o horizonte um frêmito de palmas

E junto ao leite fundo de nossas duas almas

Chamarem nossos corpos nus, entrelaçados,


Seremos, na manhã, duas máscaras calmas

E felizes, de grandes olhos claros e rasgados...

Depois, volvendo ao sol as nossas quatro palmas,

Encheremos o céu de vôos encantados!...


E as rosas da Cidade inda serão mais rosas,

Serão todos felizes, sem saber por quê...

Até os cegos, os entrevadinhos...E


Vestidos, contra o azul, de tons vibrantes e violentos,

Nós improvisaremos danças espantosas

Sobre os telhados altos, entre o fumo e os cataventos!

Mario Quintana.
Fonte:

http://www.globaleditora.com.br/Loader.aspx?ucontrol=bWVudUhvbWUsZmljaGFMaXZybw==&livroID=3581

página 62.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Prefiro Rosas



PREFIRO ROSAS, meu amor, à pátria,


E antes magnólia amo


Que a glória e a virtude.


Logo que a vida me não canse, deixo


Que a vida por mim passe


Logo que eu fique o mesmo.


Que importa àquele a quem já nada importa


Que um perca e outro vença,


Se a aurora raia sempre.


Se cada ano com a primavera


As folhas aparecem


E com o outono cessam?


E o resto, as outras coisas que os humanos


Acrescentam à vida,


Que me aumentam na alma?


Nada, salvo o desejo de indiferença


E a confiança mole


Na hora fugitiva


Fernando Pessoa
Coleção Melhores Poemas - Seleção Tereza Rita Lopes
Global editora.12º edição, São Paulo, 2004, página 137

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Sermos


The very fact that we are proves all.


O próprio fato de sermos prova tudo.


Fernando Pessoa, Aforismos e Afins.

Editora Companhia das Letras.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

E lá fora o Luar, como a esperança que não tenho, é invisível pra mim






NA NOITE TERRÍVEL, substância natural de todas as noites,



Na noite da insônia, substância natural de todas as minhas noites,



Relembro, velando em modorra incômoda,



Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.



Relembro, e uma angústia



Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo.



O irreparável do meu passado - esse é que é o cadáver!



Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.



Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.



Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures,



Na ilusão do espaço e do tempo,



Na falsidade do decorrer.



Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;



O que só agora vejo que deveria ter feito,



O que só agora claramente vejo que deveria ter sido -



Isso é que é morto para além de todos os Deuses,



Isso - e foi afinal o melhor de mim - é que nem os Deuses fazem viver...



Se em certa altura



Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;



Se em certo momento



Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;



Se em certa conversa



Tivesse tido as frases que só agora , no meio-sono, elaboro -



Se tudo isso tivesse sido assim,



Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro



Seria insensivelmente levado a ser outro também.



Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,



Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;



Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;



Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,



Claras, inevitáveis, naturais,



A conversa fechada concludentemente,



A matéria toda resolvida...



Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.



O que falhei deveras não tem esperança nenhuma



Em sistema metafísico nenhum.



Pode ser para que outro mundo eu possa levar o que sonhei,



Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?



Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.



Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos,



Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca



Como uma verdade de que não partilho,



E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível pra mim.


Fernando Pessoa


Coleção Melhores Poemas, global editora, páginas 113/114, São Paulo, 12º edição, 2004, Seleção Tereza Rita Lopes.


quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

HEDONISTA




No fundo, o homem religioso é um hedonista. O instinto religioso geral é um instinto de prazer, de ter tudo resolvido na vida. Deter-se só perante a Verdade é doloroso para o homem.

A Realidade é muda e fria.

FERNANDO PESSOA

Aforismos e Afins

Companhia das Letras, página 46, São Paulo, 2006.

www.companhiadasletras.com.br

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Sonho


SONHO. Não sei quem sou neste momento.


Durmo sentindo-me. Na hora calma


Meu pensamento esquece o pensamento,


Minha alma não tem alma.


Se existo, é um erro eu o saber. Se acordo


Parece que erro. Sinto que não sei.


Nada quero nem tenho nem recordo.


Não tenho ser nem lei.


Lapso da consciência entre ilusões,


Fantasmas me limitam e me contêm.


Dorme insciente de alheios corações,


Coração de ninguém.



Cancioneiro

Fernando Pessoa

Coleção Melhores Poemas, Seleção Teresa Rita Lopes, global editora, 12º edição, São Paulo, 2004, página 48.

sábado, 23 de janeiro de 2010

PAIRA




PAIRA à tona de água


Uma vibração,


Há uma vága mágoa


No meu coração.



Não é porque a brisa


Ou o que quer que seja


Faça esta indecisa


Vibração que adeja,


Nem é porque eu sinta


Uma dor qualquer.


Minha alma é indistinta,


Não sabe o que quer.


É uma dor serena,


Sofre porque vê.


Tenho tanta pena!


Soubesse eu de quê!...



Fernando Pessoa
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seria de mim mesmo.