sexta-feira, 31 de maio de 2024

Dicionário da Idade Média Europa Ocidental Jacque Le Goff Liberdade Feudalismo Servidão Marginais Nobreza Feudalismo Cavaleiro



1) MARGINAIS NA IDADE MÉDIA:

Sujeito Marginalizado é alguém situado à margem da vida social. Cada época contitui a sua margem, fora da qual indivíduos e grupos sociais serão vistos como inadequados e perniciosos à ordem estabelecida.

Quem eram os marginais, os excluídos elegidos pelas instituições da ordem (ex.: Igreja Católica) durante a Idade Média?

a) Banidos: O banimento era a morte em vida. O banido tinha todos seus laços de parentesco e amizade rompidos. Ninguém tinha o direito de alimentá-lo e alojá-lo. Nenhuma pessoa da comunidade poderia prestar solidariedade a ele. O banido estava condenado a vagar sozinho pelas florestas. Seus bens eram confiscados em proveito do lesado pelo seu crime ou em proveito do Tesouro (forma de entidade estatal existente). Como não havia vida fora da comunidade, o banido era dado como se falecido fosse. Sua mulher era agora viúva e, seus filhos, órfãos de pai. Vagando pela floresta, a lei não iria protegê-lo, de forma que qualquer um poderia matá-lo impunemente. 

Mas a coisa ia além. Não era só o mundo dos vivos que estava fechado para ele. O mundo dos mortos também. Era negado a ele o direito a uma sepultura. Ele não dinheiro direito a um enterro cristão. Seus despojos ficariam expostos, à disposição dos animais. No imaginário/imagético medieval, o banido sofria um processo de perda de sua humanidade, sendo comparado a um lobo. O lobo representava a floresta (natureza), o mundo natural, em oposição à cidade, à comunidade e à cultura. A natureza estava fora do controle do homem, fora de seu alcance. Já a segunda realidade, constituída pela cidade, pela comunidade, fora construída pelo homem. 

"Em outras palavras, a época opunha ao mundo humano, quer dizer comunitário, o universo da solidão." (Dicionário Analítico do Ocidente Medieval Jacque Le  Goff, Jean Claude Schmitt, volume 2, Editora Unesp, página 143).

"A Idade Média possuía sua própria visão do que viria a ser a oposição entre cidade e campo, reflexo da oposição entre cultura e natureza: colocava de um lado o que havia sido erguido ou construído pela mão do homem, e de outro os elementos selvagens e fora do alcance. Em outras palavras, a época opunha ao mundo humano, quer dizer comunitário, o universo da solidão." (Dicionário Analítico do Ocidente Medieval, Jacques Le Goff e Jean Claude Schmitt, volume 2, Editora Unesp, página 143)

O banido, assim como o lobo, tinha deixado de pertencer à comunidade. E assim como o lobo, o banido estava condenado a vagar pelas florestas solitariamente.

"A impunidade do assassinato de um banido fazia dele, aos olhos da lei, alguém igual ao lobo." (Dicionário Analítico do Ocidente Medieval Jacque Le Goff, Jean Claude Schmitt, volume 2, Editora Unesp, página 144)

A figura do banido ajudou a estigmatizar certos grupos sociais. Sua condição de condenado a vagar por aí sem destino, a ser um errante, fez com que certos grupos sociais fossem comparados com eles. Podemos citar como exemplo os ciganos. A população de uma comunidade, vendo a chegada de um grupo de ciganos, acabaria por atribuir a eles características negativas. Essas caracteristicas eram vistas de forma negativa porque elas podiam ser encontradas na figura do banido: vagar sem destino certo, errantes percorrendo a terra.

b) O herético: 

Segundo Santo Agostinho, os heréticos pertenciam à civitas diaboli. O herético representava um perigo para a coesão comunidade cristã, de forma que a Igreja Católica buscava formas para segregá-lo do convívio social. Os heréticos eram opositores internos da ordem estabelecida pela Igreja Católica.

"Eles não contestavam o dogma, mas interpretavam-no à sua maneira." (Dicionário Analítico do Ocidente Medieval Jacque Le Goff, Jean Claude Schmitt, volume 2, Editora Unesp, página 146)

Os heréticos então deviam portar um sinal na roupa que os distinguisse dos demais membros da comunidade, de modo a erguer barreiras protetoras tangíveis, deixando os fiéis separados deles. Era imperioso impedir o contato entre o fiel devoto da Igreja Católica com um herético. O herético podia fazer com que o fiel se desviasse para o lado da heresia.

c) O judeu:

No século XIII (ano 1215), no Concílio de Latrão, ficou decidido que os judeus deveriam usar roupas que os distinguissem dos cristãos. A Igreja Católica temia que, se não houvesse essa distinção visível, judeus e cristãos poderiam manter um relacionamento, em alguns casos até uma relação amorosa, sexual. O uso de roupas diferentes ou um sinal distintivo qualquer "...parece ter-se tratado não tanto de marcá-los nem de colocar sobre eles um selo infamente, mas de separar dos cristãos uma categoria humana (os judeus) que lhes era semelhante e com a qual podiam ser confundidos." ((Dicionário Analítico do Ocidente Medieval Jacque Le Goff, Jean Claude Schmitt, volume 2, Editora Unesp, página 146)

Dessa forma, a Igreja Católica manteria a comunidade cristã coesa/uniforme, impedindo relações amorosas/sexuais entre católicos e judeus. 

d) O leproso:

A lepra provinha da conduta pecaminosa da pessoa. O contato com o mal tinha o condão de produzir estigmas nos corpos das pessoas.

Constava de um Código de Leis (Código de Rotário da Lombardia), no ano 635, século VII, acerca dos leprosos: O citado Código autorizava também "...a abandonar uma noiva que ficasse cega, louca ou leprosa, 'pois isso provém de seus pesados pecados e da doença que deles resulta' " (Dicionário Analítico do Ocidente Medieval, Jacques Le Goff e Jean Claude Schmitt, volume 2, editora Unesp, página 149)

e) A imundície:

O cheiro ruim exalado de um corpo poderia ser o sinal de que aquela pessoa tinha relação com algo ruim. A cultura cristã associava a sujeira aos vícios, à vida desregrada, que era sua origem ou  consequência. Um pecado podia ser associado à sujeira, ao mau cheiro. Essa sujeira era inerente ao pecador. Essa sujeira poderia ser passada adiante, caso o portador dessa imundície tocassa em alguém, daí a necessidade de se segregar os judeus. 

Os judeus, vistos como os culpados pela crucificação de Jesus, possuíam essa impureza, razão pela qual "...o Papa Inocêncio III considerava escandaloso que cristãos dessem aos judeus seu gado para abater e seu vinho para prensar." (Dicionário Analítico do Ocidente Medieval Jacque Le Goff, Jean Claude Schmitt, volume 2, Editora Unesp, página 149)

Leis então passaram a proibir que judeus e cristãos sentassem-se à mesma mesa, frequentassem os mesmos albergues, etc.

f) Certas profissões:

As pessoas que exercessem determinadas profissões também podiam se ver marginalizados. Os usurários, os carrascos, as prostitutas, etc

"O comerciante que cobrava juros vendendo o tempo que pertencia apenas a Deus, o mestre escola que vendia conhecimento, outra propriedade de Deus, só foram lentamente reconhecidos pelo seu trabalho. O carrasco, pelo ofício infame, também suscitava medo." (Dicionário Analítico do Ocidente Medieval, Jacques Le Goff e Jean Claude Schmitt, volume 2, Editora Unesp, página 151)

2) LIBERDADE E SERVIDÃO NA IDADE MÉDIA:

a) Introdução:

A decadência do Estado, com o subsequente desmoronamento do Império Romano do Ocidente, no século V, acabou por jogar muitos dos humildes da época no colo dos poderosos, numa relação de dependência. A relação se dava da seguinte forma: de um lado o Senhor, que disponibilizava proteção a alguém, contra a agressão de algum outro potentado local. Como contraprestação a essa proteção, esse alguém trabalhava para o Senhor que o protegia. Era trabalho em troca de segurança.

Se um camponês fosse atacado, ele não teria a quem recorrer. Não existia um Estado, uma polícia/poder Judiciário a quem recorrer, que pudesse vir em seu socorro. Ele só podia pedir ajudar ao seu Senhor. 

b) Séculos VI e VIII:

Entre os séculos VI e VIII na Europa Medieval, a separação entre liberdade e servidão é bem nítida. Era uma repetição do que acontecia na Antiguidade. Ao sujeito livre estava aberta a possibilidade de ir a qualquer lugar que desejasse. Sua capacidade jurídica de ir e vir não conhece limites. Ele pode celebrar contratos, transmitir herança, etc. Ele ainda não pode ser arbitrariamente castigado, posto que está submetido a tribunais públicos. A essas liberdades somam-se outras vindas do costume germânico: homem livre é aquele que anda armado, participa de guerras e da distribuição do butim proveniente delas. 

Já o escravo não tem um ordenamento jurídico que o resguarde. Um escravo não tem estatuto. A escravidão não é uma condição, mas um estado. 

"...inteiramente submetido ao poder se seu Senhor, o escravo (servus, ancilla, mancipium), não possui recurso algum contra aquele que pode castigá-lo impunemente." (Dicionário Analítico do Ocidente Medieval Jacque Le Goff, Jean Claude Schmitt, volume 2, Editora Unesp página 73)

Ademais, os frutos do trabalho do escravo não lhe pertencem. O escravo não pode possuir!

O escravo ainda não pode escolher seu cônjuge e seu senhor pode dispor de seus filhos. Não tem vínculo familiar. Um escravo equivale a um animal, de forma que ele é posto de fora da sociedade. 

"No âmbito da sociedade civil, o escravo é deliberadamente rebaixado ao nível de uma animal. Nas leis dos séculos VI a VIII, as cláusulas relativas à venda de escravos encontram-se em meio àquelas que se referem ao comércio do gado." (Dicionário Analítico do Ocidente Medieval, Jacques Le Goff e Jean Claude Schmitt, volume 2, editora Unesp, página 73)

Trata-se de um processo de dessocialização. Essa dessocialização, fundamental em qualquer regime escravista, perderá força conforme haja um nivelamento social, que aproximou escravos e pobres livres (pauperes). 

"O direito de vida e morte do senhor sobre o escravo foi abolido apenas no reino visigótico da Espanha, mas mesmo lá a situação dele não melhorou: os senhores privados do direito de matar seus escravos recalcitrantes submetem-nos com frequência a terríveis mutilações." (Dicionário Analítico do Ocidente Medieval Jacque Le Goff, Jean Claude Schmitt, volume 2, Editora Unesp, página 173)

c) Distinções entre os escravos:

Havia os escravos bons ou idôneos (idonei). Eram a minoria. Possuíam alguma especialidade técnica. Podiam ser ferreiros, carpinteiros, etc. Alguns, trabalhando na corte, podiam ser concubinas, escrivães, etc. Havia os escravos vis, vilíssimos (vilissimi). Constituíam a grande massa dos trabalhadores rurais. Esses escravos vis podiam surgir na forma de bandos que labutavam nos grandes domínios ou aqueles instalados numa terra concedida e recebida precariamente, sob certas condições, desfrutando de uma precária vida familiar. 

d) Sociedade dos livres:

Era composta pelos

d.1) Poderosos/Potentes: Constituíam uma riquíssima aristocracia. Eles são os primeiros (proceres, primates). Por delegação régia, eles detêm o quase monopólio das funções públicas. Em princípio, sua vocação é comandar e sua liberdade quase não conhece limites. 

d.2) Pobres (Pauperes): Os pauperes são aqueles que trabalham e obedecem. Em alguns casos, podem até não serem pobres, indigentes ou paupérrimos. Alguns eram donos de várias propriedades agrícolas. O que os caracterizava de verdade era a sua submissão. Submissão em graus variados a um poder. Aqueles que realmente caíam na miséria, buscavam o auxílio e a proteção de algum poderoso local, dando em contrapartida sua obediência e serviço. Outros ainda, sendo ainda mais pobres, vendiam-se a si próprios como escravos. A lei dos visigodos dizia sobre esses contratos de alienação pessoal:

"Qualquer um que pense em vender-se não é digno de ser livre." (Dicionário Analítico do Ocidente Medieval Jacque Le Goff, Jean Claude Schmitt, volume 2, Editora Unesp, página  75)

e) Início da Mudança nas concepções de Liberdade e Servidão:

A velha escravidão, aquela importada da Antiguidade, vai desaparecendo aos poucos. Aos poucos os escravos ascenderam para a classe livre dos pauperes. Progressos técnicos (uso da energia hidráulica, por exemplo) levaram à redução da necessidade do uso de mão-de-obra maciça. 

"...a multiplicação de moinhos à água libera as mulheres escravas da obrigação de passar uma grande parte do dia e da noite movendo as mós com seus próprios braços." ( Dicionário Analítico do Ocidente Medieval Jacque Le Goff, Jean Claude Schmitt, volume 2, Editora Unesp, página 76)

"Mas seria equivocado imaginar que a libertação dos escravos rurais decorre apenas de progressos técnicos ou de transformações econômicas. A conquista da liberdade foi uma luta, ardente e obstinada, que se desenrolou por séculos (...) Ela foi marcada, certamente, por rebeliões, muitas vezes sangrentas (no século III, no V e ainda em fins do século VIII, no reino das Astúrias), mas sobretudo por uma resistência surda e por fugas maciças (na Espanha e na Itália, nos fins das monarquias visigótica e lombarda)." (Dicionário Analítico do Ocidente Medieval Jacque Le Goff, Jean Claude Schmitt, volume 2, Editora Unesp, página 77)

"Em princípios do século XI, a escravidão de tradição antiga é apenas um vestígio anacrônico." (Dicionário Analítico do Ocidente Medieval Jacque Le Goff, Jean Claude Schmitt, volume 2, Editora Unesp, página 77)

Mas é preciso ter em mente que tipo de liberdade irá substituir a escravidão, a partir do século XI. O humilde que agora é livre verá sua liberdade desidratada. Ele não terá aquela liberdade de quem anda armado, participa de uma expedição guerreira, usufruindo o butim que dela resulta. Ele também se verá em desvantagem nos âmbitos judiciário e econômico. A evolução do armamento e dos métodos de combate torna insignificante as armas simples das pessoas comuns. A guerra é atributo de especialistas que combatem a cavalo, os milites (cavaleiros). 

O pobre livre é reduzido à condição de alguém que, por si só, não tinha como se defender (inermis).

O Camponês é, portanto, o "...homem desarmado e à mercê de todas as violências." (Dicionário Analítico do Ocidente Medieval Jacque Le Goff, Jean Claude Schmitt, volume 2, Editora Unesp, página 78)

A grande propriedade passa a ser a regra. Más colheiras e partilhas sucessórias fazem com que as pequenas propriedades desapareçam, fazendo com que haja uma concentração de terras nas mãos de poucas pessoas.

Com a ausência de um poder político centralizado (ruína do Império Carolíngio no século IX), o humilde se vê sem a garantia de uma justiça pública. Sem um poder central empoderado, o campo fica livre para a ação daqueles que possuíssem mais poder, os senhores castelães. Trata-se da aplicação da lei do mais forte. Na ausência do Estado, sob o império da anomia, o homem, mais do que nunca, torna-se o lobo do próprio homem.

"O Senhorio se estabelece." (Dicionário Analítico do Ocidente Medieval Jacque Le Goff, Jean Claude Schmitt, volume 2, Editora Unesp, página 78)

Quem são esses senhores que se aproveitam do vácuo de poder vigente? O senhor é geralmente o chefe de uma das inumeráveis fortalezas (castelos) que se constroem por toda part. Esse senhor impõe o seu "ban", que é o poder de comandar, julgar e castigar todos os homens que vivem em torno de seu castelo. Tais prerrogativas foram recebidas dos príncipes territoriais (condes, duques), que, por sua vez, receberam-nas do próprio rei. 

Os homens ainda teoricamente livres, que habitavam nessas áreas sob o comando de um senhor castelão, tinham que se submeter a ele. 

"O castelão e seus agentes arrogam-se também o direito de requisitar a casa do camponês e de consumir suas provisões (direito de asilo ou de pousada)" (Dicionário Analítico do Ocidente Medieval Jacque Le Goff, Jean Claude Schmitt, volume 2, Editora Unesp, página 77)

O camponês então, mesmo sendo teoricamente livre, via-se tiranizado por esses senhores. Poderíamos fazer uma analogia com o que acontece atualmente na cidade do Rio de Janeiro, onde cidadãos livres se veem controlados por grupos de milícias e de tráfico de drogas. Bairros inteiros sob o império de traficantes ou milicianos. A ausência do Estado, em qualquer época, possibilita que grupos armados organizados tiranizem os habitantes de uma determinada área. 

O Senhor ainda podia fazer o papel de juiz, impondo multa e confisco de bens. 

Essa forma de dependência entre o senhor castelão e o camponês foi chamada de Servidão.

f) Feudalismo:

Sociedade fundada no vínculo pessoal (relação de dependência). Na ausência de um poder político central, que a todos vinculasse de forma impessoal, o que fornecia liga àquela sociedade era o vínculo entre as pessoas, entre o vassalo e o seu suserano/senhor. 

Na sociedade feudal, encontramos de um lado os senhores do "Ban" e seus auxiliares, a saber, no essencial, os barões e seus cavaleiros; de outro lado, temos aqueles que, independentemente de seu estatuto teórico, estavam submetidos às imposições do senhor castelão. 

Os senhores são os livres entre os livres, nascidos em berço nobre, que não sofrem coação de nenhum poder e, protegendo grandes e pequenos, protegem-se a si próprios. A sua liberdade pode ser traduzida pela impunidade e imunidade. Em torno dele, reúnem-se uma tropa de vassalos, que não são iguais entre si. Na verdade, há um encadeamento. Uma mesma pessoa pode ser vassalo e senhor. "A" é vassalo de "B", um senhor castelão. Ao mesmo tempo, "A" pode ser senhor de "C", que será seu vassalo. 

A liberdade no feudalismo tornou-se uma questão de classe social e não de ordem jurídica, como acontecia na Antiguidade e no início da Idade Média . 

"O fato é que a clivagem entre livres e não livres não é mais de ordem jurídica como na Antiguidade e na alta Idade Média, mas de cunho social." (Dicionário Analítico do Ocidente Medieval Jacque Le Goff, Jean Claude Schmitt, volume 2, Editora Unesp, página 80)

3) CAVALARIA:

Na Cavalaria, não entra quem quer. Reis, príncipes e senhores filtram quem pode ou não pode ser um cavaleiro. De guerreiro a cavalo, o cavaleiro se torna aristocrata (nobre). São, antes de tudo, soldados. São os milites, os chevaliers. 

"...o Cavaleiro forma um todo com sua montaria e esse projétil vivo beneficia-se da potência que lhe confere o galope do cavalo." (página 213)

Há um choque frontal. O cavaleiro usa uma lança em posição horizontal fixa. 

"...a carga compacta de cavaleiros, lança estendida na horizontal, adquire terrível força de penetração, capaz de desbaratar as fileiras adversárias e provocar o medo, o pânico e a fuga do inimigo." (Dicionário Analítico do Ocidente Medieval, Jacques Le Goff e Jean Claude Schmitt, editora Unesp, volume 1 213). 

Além de representar uma força ofensiva formidável, ainda cercava-se de muitas defesas. 

"Nos séculos XI e XII, o cavaleiro protege seu corpo graças à loriga, cota de malha flexível de uns dez quilos, reforçada no século XIII, para ceder lugar, nos séculos XIV e XV, às armaduras rígidas, mas articuladas, que transformavam o cavaleiro em verdadeira fortaleza montada, quase invulnerável se ele estivesse a cavalo, mas terrivelmente exposto e frági quando, desmontado, ele fica no chão, à mercê da adaga dos infantes (chamada, aliás, 'misericórdia'), capaz de penetrar nos interstícios da couraça e conduzir à morte ou, pelo menos, à sua ameaça para obter rendição." (Dicionário Analítico do Ocidente Medieval, Jacques Le Goff e Jean Claude Schmitt, editora Unesp, volume 1, página 213/214)

O cavaleiro da Idade Média era, portanto, uma espécie de carro blindado da época moderna. 

As origens dos cavaleiros datam de antes do ano 1000. Nessa época, os grandes senhores tinham se cercado de uma clientela formada por vassalos e combatentes profissionais, encarregados, logicamente, de protegê-los e ajudá-los no exercício do poder que eles encarnavam. Com o colapso do poder central, consubstanciado na ruína do Império Carolíngio no século IX, o poder se dividiu, ficando nas mãos de vários tipos de senhores, que irão se valer dos serviços desses cavaleiros, no contexto de uma sociedade feudal em crescimento. 

O Império Carolíngiou colapsou a partir de meados do século IX, sendo atingido por ataques desferidos pelos Vikings, húngaros e sarracenos. O Império acaba sendo dividido entre os filhos de Luís, o Piedoso (Tratado de Verdum de 843). O título imperial acaba por perder significado e o poder central fragmenta-se nas mãos de inúmeros senhores (condes, príncipes, etc.

"A pulverização do poder público acentua-se ainda mais nos séculos X e prossegue no século XI. O poder de mando de origem pública não desaparece, mas, despedaçado, reparte-se segundo uma hierarquia variável no seio das elites da aristocracia militar, dos príncipes aos condes, dos condes aos castelões e dos castelões aos mais poderosos senhores. Aí, esse poder encontra um outro, o do senhor rural sobre seus homens, seus dependentes. O Estado não mais se resume a uma relação privilegiada entre o Soberano e o aristocrata militar: ele está compreendido no conjunto de relações sociais que estruturam essa classe aristocrática; é exatamente isso que constitui a revolução feudal." (Dicionário Analítico do Ocidente Medieval Jacques Le Goff e Jean Claude Schmitt, editora Unesp, volume 1, página 449)

O sujeito tornava-se cavaleiro por meio de um ritual, conhecido como Adubamento. Por meio do adubamento, geralmente um jovem, era admitido como cavaleiro. Armas eram entregues para ele. A Igreja também participava, abençoando-o. 

Os cavaleiros eram também conhecidos como Milites

4) NOBREZA

Tratava-se de uma sociedade dominada por uma classe superior. Vários substantivos nomeiam-na: optimates, proceres, majores, illuster, nobilis. O nobre quer escapar de todos os controles que limitam a ação do homem comum. Casa-se na sua classe. Evita se misturar com quem não é de sua classe. É uma nobreza de sangue. A nobreza justifica seus privilégios no campo de batalha, no qual derrama o seu sangue, como um tributo, que servirá como justificativa para que se veja livre de qualquer controle ou limitação. 

O conceito de Nobreza veio de dois lugares:

a) Da Antiguidade Clássica. Das Instituições romanas. Não obstante as invasões bárbaras, muita coisa do Império Romano do Ocidente foi preservada, tais como a noção de cidadão, autoridade pública, Estado, etc.

b) Tradição Germânica: Aqui a nobreza notabilizou-se pela Libertas, que era a faculdade de dispor de si e de seus bens, a capacidade de julgar, o direito de comandar, proibir, punir, proveniente do nascimento e da propriedade.

No fim, houve um amálgama entre as duas tradições, a romana e a germânica, na construção do conceito de Nobreza.

A transmissão da nobreza, de seu nome, estatuto, patrimônio poder e condição de nobre.

A nobreza era pouco numerosa. Com seus casamentos consanguíneos, ela gerava gerações de pessoas doentes. dos quais se defaz, enviando-os para conventos, mosteiros. Cegos, caolhos, pernetas, mancos, disformes em geral, todos eles nobres de nascimento. A nobreza ainda perde muitos de seus membros em guerras. Participar de guerras era o tributo que a nobreza pagava para conseguir seu estatuto de privilegiado.

Ligação entre o Rei e a Nobreza

Os carolíngios criaram uma ponte entre si e os nobres autóctones e estrangeiros. E eles iam além da nobreza de sangue. Os carolíngios criaram uma espécie de nobreza que era alcançada por meio de serviços prestados ao Soberano. 

É criada ainda uma relação de simbiose entre o Rei e a Nobreza. Uma não poderia existir sem a outra. Sem rei não há nobreza e sem nobreza não há rei. A nobreza também terá uma relação umbilical com a Igreja Católica. Vários membros da Nobreza tinham cargos na Igreja

Com a crise do Império Carolíngio, no século IX, o poder central esfarela-se. O poder que estava na mão do Imperador passará para as mãos de inúmeros senhores, detentores daquilo que era chamado de senhorio banal, proveniente do Bannum (Ban), que era o poder de comandar, proibir, punir, etc. 

Ascensão à nobreza:

Alguém podia se tornar nobre, como já dito acima, prestando serviços a algum grande senhor, que possuísse poder para fazê-lo um nobre. Em meio ao caos do século X, senhores vários (reis, príncipes, etc), cercavam-se de pessoas, de uma clientela, para ajudá-los nos mais diversos assuntos. Cercam-se, sobretudo, de Milites, os combatentes a cavalo (cavaleiros). Se prestassem bons serviços, esses Milites recebiam feudos (uma propriedade com alguma residência fortificada). Esses Milites deviam obediência ao seu senhor, deviam dar a sua vida para ele em meio a um combate, etc. Deveriam ainda combater os hereges, proteger as mulheres, os órfãos, pobres, etc. Com o passar do tempo, esse cavaleiro poderá se tornar um nobre

Um título de nobre também poderia ser concedido por um Senhor que tivesse poder para tanto, geralmente um rei, um Imperador ou um príncipe. 

Tudo isso foi um meio para "....rejuvenescer a nobreza, de preencher as lacunas e sobretudo enriquecê-la com numerosos e competentes fiéis. O Estado, que estende seu controle ratione materiae et loci, necessita cada vez mais de auxiliares de confiança." (Dicionário Analítico do Ocidente Medieval Jacques Le Goff e Jean Claude Schmitt, editora Unesp, volume 2,  página 323)

Fim da Idade Média:

Não teve o condão de acabar com a Nobreza. Houve adaptações às circunstâncias. Conservava a sua vocação militare suas ambições políticas. Continuava buscando escapar dos controles estatais que limitavam o restante de população. Alguns trocam o campo pela cidade. Continuam ocupando excelentes cargos no serviço militar e no serviço civil. 




quinta-feira, 30 de maio de 2024

A vida é um Pesadelo


 Otto Dix, artista alemão, que conheceu os horrores da 1° Guerra Mundial. 


Minha mãe morreu no dia 21 de dezembro de 2023

Durante uns 4 meses não sonhava com ela

Mas tudo mudou ultimamente

Sonho intercalado com pesadelos

E os piores pesadelos, nos quais eu a vejo sangrar outra vez, acontecem geralmente naquele momento em que, depois de acordar, você volta a dormir. É aquilo que é representado pelo botão "soneca" do despertador

A vida, definitivamente, é um pesadelo, do qual só irei acordar quando vier a morrer. 

segunda-feira, 13 de maio de 2024

Fontes do Direito Costumes Direito Consuetudinário Introdução Histórica ao Direito Fundação Calouste Gulbenkian



 Costumes:

"Define-se geralmente o costume como sendo um conjunto de usos de ordem jurídica que adquiriram força obrigatória um dado grupo social, pela repetição de atos públicos e pacíficos durante um lapso de tempo relativamente longo." (página 250)

"O costume é um direito não escrito, introduzido pelos usos e pelos atos continuamente repetidos dos membros da comunidade e os quais foram praticados publicamente, sem contradição da maioria do povo, o tempo necessário para o impor." (Philippe Wielant, Practijke Civile - citado na página 250)

Características do Costume:

Trata-se de um Direito não escrito. No seu início do seu uso, o costume é essencialmente não escrito. Num primeiro momento, nem é oralmente transmitido. Somente a partir do momento que as pessoas se dão conta de sua existência, que ele é transmitido oralmente pelos mais velhos aos mais jovens. 

Quando o uso de um costume está suficientemente estabelecido, ele poderá ser escrito. Na Europa dos séculos XIII e XIV, autoridades ordenavam oficialmente a redação de alguns costumes. O costume assim virava lei. 

O Costume é criado pelos usos e atos continuamente repetidos. 

"O uso nasce da repetição de comportamentos humanos, isto é, de certas maneiras de agir num dado grupo social (página 251)

Nem todo uso é um costume, mas todo costume é. É necessário também que esse uso repetido nasça voluntariamente. Os atos repetidos devem ser voluntários. 

Os usos não podem ser clandestinos. Os comportamentos humanos repetidos que criam costumes devem ser públicos. 

"...um uso que se revelou exteriormente tem, em princípio, toda a sua eficácia, mesmo que permaneça desconhecido de um ou outro membro do grupo social." (página 252)

Para que um costume seja aceito, é necessário que ele conte com a aceitação que a grande maioria do grupo social, isto é, quase a sua unanimidade, o aceite. 

O tempo necessário para que um costume seja aceito. 

"Wielant põe a tônica na necessidade duma longa duração: o costume apenas existe se o povo se serviu dele durante o tempo necessário para atingir a prescrição. O que Wielant visa falando da prescrição, é que é necessário que o costume tenha sido aplicado durante um tempo suficientemente longo para que a sua existência não possa ser posta em dúvida. A duração desse tempo necessário é uma questão de fato. Determinado costume, resultante de um uso frequentemente repetido, poderá ser considerado como estabelecido depois de alguns anos, ou mesmo alguns meses ou alguns dias; outro costume, relativo a fatos que não se reproduzem senão raramente (por exemplo, as regras relativas à sucessão ao trono), não será considerado como estabelecido senão depois de vários anos." (página 252)

Na Baixa Idade Média, exigia-se em geral que o costume fosse imemorial, isto é, que ninguém se lembrasse da existência se um costume contrário. (página 252)

No fim da idade média, com o uso do Direito Romano, começou a ser admitido alguns prazos de prescrição, conforme o costume fosse ou não conforme o direito romano. 

- costume contrário ao direito romano (contra ius) 30 ou 40 anos

- costume desconhecido no direito romano (praeter ius) 10 ou 20 anos 

- costume conforme ao direito romano 5 ou 10 anos

(páginas 252/253)

O Costume deve ser razoável. Razoável, isto é, de acordo com a razão. Um costume poderia ser contrário à razão quando ele conflitasse com o interesse geral. Poderia ser visto como contrária à razão se colocasse em perigo a ordem pública. 

"Philippe Wielant, na sua Practijke Civile, considera como maus os costumes que são ou causa de pecado, ou causa de mau exemplo, ou introduzidos por maus hábitos; esses costumes não se prescrevem; é necessário matá-los, diz Wielant, porque <<corruptele>>." (página 253)

O costume é espontâneo, ao contrário do que acontece hoje, com o direito escrito, que é abra da vontade de um Deputado estadual ou federal, de um Senador ou, num munícipio, de um Vereador. 

"não se faz o costume, ele faz-se por si próprio." (página 253)

O costume evolui constantemente, adaptando-se sem parar ao meio social no qual está inserido. Por não estar estabelecido num escrito, torna-se mais maleável.

Sua elaboração, ao contrário de uma lei escrita, que pode ser feita rapidamente, demanda tempo. Pode demorar até que seja aceita. 

O costume é ainda instável, está num perpétuo devir, numa evolução constante. O costume é ainda incerto, em alguns casos, demandando prova de sua existência em caso de contestação. Nasce daí uma insegurança jurídica. O costume é, finalmente, variável, flutuando ao sabor das mudanças sociais. 

Locais dos costumes:

Num primeiro momento, os costumes eram étnicos. Cada grupo tinha o seu. Francos, Burgúndios, Bávaros, etc, cada grupo tinha o seu costume. Posteriormente, o costume passou a ser territorial, isto é, um costume era aplicado à população que residia num determinado território (séculos X-XII na Europa).

"Num mesmo território, no entanto, podiam coexistir vários costumes, aplicando-se a grupos sociais diferentes, sobretudo a classes sociais diferentes; por exemplo, numa mesma cidade: costumes dos nobres ou costumes feudais, costumes dos burgueses, costumes dos vilãos." (página 254)

A Prova do Costume:

Não há dificuldade em provar a existência de uma lei escrita. O nosso direito ainda supõe que as leis são conhecidas por todos, porque NEMO LEGEM IGNORARE CONSETUR (ninguém pode ignorar a lei).

O problema reside quando se pretende provar a existência de um costume. Durante a Idade Média procurava-se escolher pessoas qualificadas, as mais qualificadas do grupo social, escolhidas entre os notáveis de uma cidade e de uma aldeia, pois delas esperava-se o conhecimento sobre a existência de um determinado costume. Mas isso não impedia que, em determinada situação, alguém resolvesse contestar a existência de um determinado costume

"...só a partir do século XIII surgem processos próprios para a prova do costume: os registros de costumes, a inquirição por turba, etc." (página 259)

"Até então, o juiz não fazia distinção entre a prova da norma jurídica e a prova dos fatos, dado o caráter irracional dos meios de prova. Estes meios são, nesta época como na época franca, sobretudo os ordálios e os julgamentos de Deus, meios de prova que fazem apelo à intervenção divina: é Deus que permite ao inocente vencer, e ao culpado ser vencido na prova que lhe é imposta. O juiz contenta-se com a verificação de que o processo de prova se desenrolou regularmente e deduzir daí a conclusão indicada pela divindade. Estes meios de prova não tendem pois a provar a existência duma regra de direito consuetudinário, nem tão pouco a provar o fato invocado por uma ou outra das partes; tendem a por fim ao litígio por apelo a Deus." (página 259)

Indiretamente, o julgamento de Deus podia, contudo, estabelecer uma regra jurídica: este foi o caso, por exemplo, em 938 (século X), na região do Ruhr (atual Alemanha), onde Otão (Imperador do Sacro Império Romano Germânico) ordenou um duelo judiciário para saber se, segundo o costume do lugar, a representação sucessória na linha reta era admitida. 

Nos séculos XII e XIII, os meios de prova racionais se impôem. A verdade deveria ser estabelecida sem a intervenção de Deus. Isso era feito por meio de testemunhas, documentos, jurisprudência, etc. Também é estabelecida a diferenciação entre a prova dos fatos e a prova da regra jurídica invocada para aquele caso concreto. Uma será a prova sobre o costume invocado e a outra sobre a realidade dos fatos.

Realização da Prova do Costume:

- o costume é notório: é o que o juiz conhece. as partes não precisam prová-lo

- o costume privado: a prova dele deve ser feita diante do juiz. o ônus geralmente recai sobre aquele que o invoca

Meios de prova do Costume:

- INQUIRIÇÃO POR TURBA: É um meio de prova específico do costume. O costume invocado por uma das partes e contestado pela outra parte, era submetido para a apreciação de um grupo de pelo menos dez homens, escolhidos entre os mais qualificados pela sua experiência. Apois deliberação, eles deviam dizer, por unanimidade, se aquela regra consuetudinária era aplicável ou não naquele caso concreto. A inquirição por turba aparece no século XIII. Era a responsabilidade de "dizer o costume". 

- OS REGISTROS DE COSTUMES: Os registros de costumes existentes eram declarações orais feitas periodicamente para recordar as relações existentes entre o senhor e os habitantes do seu senhorio. Serviam para recordar os usos rurais. Lembrar das obrigações que incidiam sobre as coisas e as pessoas do senhorio. Lembrar sobre os direitos sobre o uso dos bosques e das terra incultas. Entravam também questões penais, matrimoniais, sucessórias,, etc. Eram rememorados de ano em ano. Durante os séculos XIV e XV, esses registros começaram a ser reduzidos a escrito. É sobretudo a partir do século XIII que os costumes começam a ser reduzidos a escrito. Em meados do século XV, o rei francês Carlos VII, ordenou a redação dos costumes em todo o reino. Carlos V, em 1531, deu a mesma ordem nos Países Baixos (atuais Bélgica e Holanda). 

- O RECURSO A TRIBUNAL SUPERIOR OU REENVIO: Aqui, uma determinada jurisdição perguntava a uma outra jurisdição como um determinado litígio, que lhe era submetido, deveria ser decidido. Era uma espécie de consulta. 

Os Coutumiers:

Era obras privadas na quais eram expostos as regras de direito consuetudinário de uma determinada região. Os autores desses livros de direito eram práticos do direito (oficiais de justiça, bailios, etc). Chamados a participar de alguma atividade judiciária numa região qualquer, reduziam a escrito os resultados da sua experiência. Eram juristas leigos. Não tinham formação universitária. 

Consequência da redação oficial dos costumes:

A partir desse momento, o costume passa a ser certo. Já não necessidade da parte prová-lo. A inquirição por turba é abolida. Passa a ser proibido constestar o texto do costume. Apenas o rei pode completá-lo ou interpretá-lo. Na França, o costume reduzido a escrito poderia ser revogado por desuso ou pela formação de direito novo.

ANOTAÇÕES EXTRAÍDAS DA LEITURA DO LIVRO "INTRODUÇÃO HISTÓRICA AO DIREITO, 8° EDIÇÃO, FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN, JOHN GILISSEN

 


O Milagre esperado por Hitler O Milagre da Casa de Brandemburgo



Introdução:

Em abril de 1945, escondido em seu bunker, com os russos em Berlim e os americanos e os britânicos chegando pelo oeste, Adolf Hitler esperava por um milagre.

Esse milagre tinha um precedente histórico. Nos anos de 1756 a 1763, desenrolava na Europa uma guerra, mais uma. Era a Guerra dos Sete Anos. De um lado, Rússia, França, Áustria e o Sacro Império Romano Germânico. Do lado oposto, havia Prússia e Inglaterra. Foi quase uma guerra mundial, com combates na Europa e nas Américas. 

A Prússia, embrião da Alemanha Nazista de Hitler, era então governada por Frederico II, uma espécie de déspota esclarecido. Governava como um déspota mas fazia algumas concessões ao iluminismo, como a tolerância religiosa. A Prússia de Frederico II estava perdendo a guerra. Apesar de algumas vitórias, como em Rossbach, quando derrotou um exército combinado de franceses e alemães do Sacro Império, a Prússia vinha sentindo o peso de lutar em duas frentes, tendo que enfrentar o exército russo, que possuía uma fonte inesgotável de recursos humanos e materiais. 

Em 30 de abril de 1945, Hitler se suicidou no Burker. Frederico II, após a batalha de Kunersdorf (12 de agosto de 1759), também pensou em se matar. 

"Os dois exércitos (o russo e o prussiano) se encontraram em Kunersdorf, a nordeste de Frankfurt an der Oder, em 12 de agosto. O que se seguiu foi o maior desastre militar de Frederico e a maior façanha armada russa do século XVIII. Imediatamente após a batalha, Frederico escreveu a seu ministro Finckenstein: 'Meu casaco está coberto de balas de mosquete, e dois cavalos foram mortos sob mim. Tenho o infortúnio de ainda estar vivo. Nossas perdas são grandes demais , e só me sobraram 3 mil homens de um exército de 48 mil. No momento em que escrevo, todos estão em fuga, e não posso exercer qualquer controle sobre meus homens. Em Berlim, é preciso pensar em sua segurança. Não devo sobreviver a esta cruel virada do destino. As consequências serão piores do que a derrota em si. Não tenho mais recursos e, falando bastante francamente, acredito que tudo está perdido. No devo sobreviver à derrocada de minha terra mãe. Adeus para sempre." ("Frederico, o Grande, o Rei da Prússia", Tim Blanning, Editora Amarilys, página 229)

Mas, ao contrário de Hitler, Frederico II não se matou. Continuou lutando e, no fim, seria premiado pelo destino. O evento que iria mudar o desenrolar da guerra passaria para a história como o MILAGRE DA CASA DE BRANDEMBURGO. O Reino de Frederico, no início, era conhecido como Brandemburgo-Prússia, daí a expressão Casa de Brandemburgo.

O Milagre:

O milagre que salvou Frederico II e seu reino veio de uma morte. A morte da imperatriz russa Isabel.

"Uma mulher morre e a nação renasce." (frase atribuída a Frederico II, citada na página 262, "Os Románov, 1613-1918, Simon Sebag Montefiore, editora Companhia das Letras)

Isabel era filha de Pedro, o Grande, o criador da moderna Rússia. Isabel odiava Frederico II e estava disposta a destruí-lo. Mas ela morreu às quatro da manhã do dia de Natal, no ano de 1761. No seu lugar assumiu Pedro III. Pedro III era filho de Anna, outra filha de Pedro, o Grande, e de um príncipe alemão, o duque de Holstein. Pedro III passou a sua infância no ducado de Holstein, no norte da Alemanha. Pedro III nunca se sentiu russo, mal falava russo e tinha Frederico II e a Prússia como um ídolos. Tão logo assumiu o trono russo, Pedro III inverteu os rumos da guerra. O reino da Prússia, que estava prestes a ser destruído, foi salvo. De inimigo da Rússia, a Prússia virou sua aliada. Os czares (tsares) russos eram autocratas. Não prestavam contas a ninguém. Não havia um parlamento, uma opinião pública. Eles podiam praticamente tudo, inclusive transformar um inimigo em aliado, invertendo totalmente o curso de uma guerra, num piscar de olhos.  Esse, portanto, foi o Milagre da Casa de Brandemburgo.

"Frederico mal podia acreditar. Dentro de apenas algumas semanas, o norte e o leste tinham sido neutralizados, e a Rússia, transformada de inimiga em aliada." (página 243, "Frederico, o Grande, o Rei da Prússia, de Tim Blanning, editora Amarilys)

"O resumo de eventos que relatamos apresentará a nós a Prússia à beira da ruína, no fim da última campanha; sem recuperação no julgamento de todos os políticos, mas uma mulher morre e a nação revive; (...) Quanto se pode depender das questões humanas, se as ninharias mais naturais podem influenciar, podem mudar o destino de impérios? Essas são as diversões do destino, que, rindo da vã prudência dos mortais, excita as esperanças de alguns e puxa para baixo as altas expectativas de outros." (texto atribuído a Frederico, citado no livro "Frederico, o Grande, o Rei da Prússia, de Tim Blanning, editora Amarilys, página 243)

O Milagre esperado por Hitler:

Em abril de 1945, escondido em seu Bunker, sob uma Berlim tomada pelos russos, Hitler ficava no seu cômodo particular, olhando para a parede, onde havia um retrato de Frederico II. Olhando para ele, Hitler esperava que, da mesma forma como Frederico II havia sido salvo por um milagre, ele também seria contemplado por um, que iria salvar a Alemanha nazista. A esperança de Hitler aumentou com a morte de F. D. Roosevelt, o presidente dos EUA. Hitler esperava que a morte de Roosevelt redundasse no rompimento da aliança entre os Aliados (URSS, Inglaterra e EUA). Em 1761, a morte da Imperatriz russa Isabel tinha rompido a aliança entre Áustria, França e Rússia. Hitler já enxergava a aliança entre países capitalistas (EUA e Inglaterra) com a Comunista URSS como antinatural. A morte de Roosevelt poderia ser o gatilho para derrubá-la. Mas não derrubou. Roosevelt foi sucedido pelo seu vice, H. Truman, que manteve a aliança com a Inglaterra e a URSS em pé. O milagre não veio. Hitler se suicidou. A Alemanha Nazista foi destruída. A Prússia de Frederico II deixou de existir em 1947. A Prússia de Frederico hoje chama-se Kaliningrado, um enclave russo na Europa Oriental. 

ANOTAÇÕES EXTRAÍDAS DA LEITURA DOS LIVROS ABAIXO RELACIONADOS:

Frederico, o Grande, o Rei da Prússia. Tim Blanning, Editora Amarilys

Os Románov 1613-1918. Simon Sebag Montefiore, Editora Companhia das Letras

O Bebê Prisioneiro na Rússia Czarista Versão russa do Homem da máscara de ferro



BEBÊ IVAN VI


 A HISTÓRIA DE UM BEBÊ FEITO PRISIONEIRO NA RÚSSIA CZARISTA

Introdução:

IMPERATRIZ ANNA

Em abril de 1730, o Império Russo era governado pela Imperatriz Anna. Ela não era casada. Não tinha filhos. Precisva de um herdeiro para substituí-la no trono russo. Anna então designou sua sobrinha Anna Leopóldovna como sua herdeira. Anna Leopóldovna era filha de sua irmã falecida com o duque de Mecklenburgo, Karl Leopold. Foi arranjado ainda um casamento para Leopóldovna com um príncipe alemão, Anton Ulrich Brunswick-Wolfenbuttel Brevern.

Nomes alemães:

Todos esses nomes alemães não eram estranhos na Rússia Czarista. Membros de famílias reais se casavam com membros de outras famílias reais.. E com a família real dos Románov não era diferente. Pedro, o Grande, procurou príncipes estrangeiros para casar com suas filhas e suas sobrinhas. Pedro tentou casar sua filha Isabel com o rei francês Luís XV. Conseguiu casar uma de suas filhas com o duque alemão de Holstein e casou suas duas sobrinhas com oustros príncipes alemães.  A Rússia czarista ainda se valia de funcionários estrangeiros para a administração do governo. O próprio governo da Imperatriz Anna contava com três alemães nos principais cargos do governo: Biron, que era seu amante. Munnich, que era general e Osterman, uma espécie de primeiro ministro. Ainda no século XVIII, a Rússia czarista teria dois governantes nascidos na Alemanha, Pedro III, nascido no ducado de Holstein, que mal sabia falar russo, e Catarina II, a Grande, nascida Sophie, oriunda de um pequeno estado alemão, Anhalt Zerbst.

Esses alemães aboletados no governo russo serviu para alimentar uma teoria conspiracionista criada por Adolf Hitler. Hitler considerava os povos eslavos, que habitavam a Rússia (URSS) como seres inferiores, sub-humanos. Sendo seres inferiores, essas pessoas não poderiam governarem a si mesmos. Não poderiam criar um Estado. Assim, na cabeça de Hitler, a URSS, que era habitada basicamente por povos eslavos, não passava de uma ficção, de um Estado artificial, criado por elementos de fora. Num primeiro momento, os eslavos foram governados por alemães e, agora, eram governados pelos judeus. A URSS, então, na concepção de Hitler, seria um gigante com pés de barro, uma castelo de cartas que, no primeiro chute, iria desmoronar. Essa crença de Hitler, dentre outros motivos, o levou a invadir a URSS (Operação Barbarossa - junho de 1941). Hitler esperava uma vitória rápida. O desenrolar da história mostrou que ele estava errado.

Casamento:

ANNA LEOPÓLDOVNA

Em 3 de julho de 1739, Anna Leopóldovna, nascida Elizabeth de Mecklenburgo, e Anton Ulrich, mesmo se odiando, se casaram. Não importava que o casal se odiasse, eles precisavam conceber um herdeiro. Anna dividia sua cama com dois amantes, num ménage á trois com um embaixador da Saxônia, o Conde de Lynar, e uma cortesã alemã, Julie Von Mengden. Já o marido Anton Ulrich era sexualmente ambíguo e gago.

Nascimento de IVAN VI, o futuro bebê prisioneiro:

Nascido em agosto de 1740, Ivan estava condenado a ter uma existência miserável. 

Morte da Imperatriz Anna:

Com a morte de Anna, o bebê Ivan foi alçado à posição de herdeiro do Império Russo. Seria o futuro Czar. Mas antes de atingir a maioridade, a Rússia seria governada pelos seus pais, Anna e Anton. Mas a política russa era muito instável. Não demorou muito e um golpe foi engendrado por Isabel. Isabel era uma das filhas de Pedro I, o Grande, o fundador da Rússia moderna. No desenrolar da história, o casal Anna e Anton foram separados de seu filho Ivan. O casal foi exilado e Ivan foi preso. 

"Os guardas ficaram esperando o bebê Ivan VI deposto acordar em seu berço, para ser preso em seguida (na medida em que um guarda pode prender um bebê) e trazido a Isabel, que segurou o ex-czar no colo." (Os Románov 1613-1918, Simon Sebag Montefiore, Editora Companhia das Letras, página 238)

Olhando para o bebê, Isabel, agora Imperatriz da Rússia, disse:

"Você não tem culpa de nada." ((Os Románov 1613-1918, Simon Sebag Montefiore, Editora Companhia das Letras, página 238)

Isabel tinha razão. Aquele bebê não era culpado de nada, mas seria tratado como se assim o fosse. Ele era um czar destronado e, como tal, iria representar uma ameação ao governo de Isabel. Qualquer conspirador, que desejasse derrubar Isabel do trono russo, poderia usar o nome de Ivan, mesmo que este não soubesse de nada, como aquele que deveria substituí-la. E isso realmente aconteceu. Logo no início de seu governo, uma conspiração tentou derrubar Isabel. E os conspiradores, inclusive o rei da Prússia, Frederico II, pretendiam colocar Ivan de volta ao trono russo. Em razão de sua tenra idade, obviamente que Ivan não tinha consciência de nada. Mas isso não importava. Sendo uma ameaça, ele foi punido com o isolamento numa fortaleza. Não tinha contatos com seus pais, com seus irmãos. Ao ficar doente, Isabel proibiu que ele recebesse tratamento médico adequado. Mesmo assim sobreviveu. Havia ainda mais injustiças e crueldades esperando por ele. Aos 15 anos, ele foi transferido para Chlisselburg, uma fortaleza no norte da Rússia. Ele estava arruinado, com os olhos baços, gaguejando e quase louco, embora, àquela altura, soubesse quem era. 

Era uma versão russa do homem da máscara de ferro. A ordem era clara: Na eventualidade de alguém tentar resgatá-lo de sua prisão, Ivan deveria ser imediatamente assassinado. Ivan ficou trancado sob três governantes russos: Isabel, Pedro III e Catarina II, a Grande. Nenhum desses poderosos demonstrou piedade por ele. Eles o viam como uma ameaça, e por esse motivo mantinham-no aprisionado. 

Morte de Ivan:

Em julho de 1764, sob o governo de Catarina II, uma tentativa de golpe foi engendrada. Um oficial tentou libertar Ivan. Esse oficial foi ajudado por outras pessoas. Queriam colocar Ivan no trono russo. Houve um tiroteio no interior da prisão. Depois disso, Ivan foi encontrado morto, por tiros e facadas. O bebê tinha finalmente encontrado a paz, depois de tantos anos de sofrimento.

ANOTAÇÕES EXTRAÍDAS DA LEITURA DO LIVRO "OS ROMÁNOV 1613-1918, SIMON SEBAG MONTEFIORE, EDITORA COMPANHIA DAS LETRAS