terça-feira, 6 de julho de 2021

As Estratégias de Santo Agostinho e Maquiavel




O POLITEÍSMO E O MONOTEÍSMO:

No início da história humana vigorava o politeísmo. O medo daquilo que está além da compreensão humana é a fonte criadora das religiões, dos deuses. Desde sempre deuses e espíritos personificaram, materializaram as manifestações da natureza (raios, enchentes, temporais, vulcões, terremotos, eclipses, etc), doenças, etc. Enfim, tudo aquilo que se encontrava além da compreensão humana era materializado na forma de um deus, de um espírito. Daí surgiu a adoção do politeísmo na Antiguidade. Havia uma miríade de deuses e espíritos venerados e temidos pelos seres humanos. 

Enquanto vigorava o politeísmo, a religião se mostrava inofensiva para a administração dos Estados. 

"Os deuses passavam tanto tempo discutindo entre si que os mortais mantinham uma espécie de equilíbrio aqui na terra." (página 97)

Mas quando o monoteísmo superou o politeísmo, surgiram várias perguntas:

- as pessoas deviam obediência a César (Estado) ou a esse Deus único, onisciente e onipotente?

- o Estado agora precisaria da aprovação da Igreja para que seus atos fossem legitimados?

- a Igreja sobreviveria sem a proteção do Estado?

Para resolver essas questões foram elaboradas duas estratégias, uma por Santo Agostinho e outra por Maquiavel. 

SANTO AGOSTINHO BUSCAVA, ANTES DE TUDO, CONCILIAR RAZÃO E FÉ:

Como conciliar a ideia de um Deus onipotente e onisciente com o mundo imperfeito no qual vivemos, onde até um inocente bebê, na visão de Santo Agostinho, assume a forma de um verme voraz?

"Se os bebês são inocentes, não é por lhes faltarem o desejo de fazerem o mal, mas por lhes faltarem forças." (página 99)

Será por meio da Razão que Santo Agostinho tentará explicar essa contradição envolvendo um Deus onipotente e um mundo imperfeito. Esse mundo imperfeito estava nos pecados confessados pelo próprio Santo Agostinho, em seu livro "Confissões". A imperfeição do mundo ainda estava na decadência do Império Romano. Santo Agostinho vivenciou as invasões dos bárbaros, a tomada de Roma pelos visigodos de Alarico, no ano de 410. 

Nessa busca de tentar conciliar a onipotência de Deus com um mundo imperfeito, Santo Agostinho buscará, por exemplo, justificar a guerra, uma conduta obviamente pecaminosa do homem, mas que podia ser justificada, por meio do seguinte pensamento: a guerra existe porque Deus talvez quisesse punir o homem para o seu próprio bem ou, se ele fosse morto no campo de batalha, viesse a ser transportado para um mundo melhor.

Enfim. sua luta para conciliar fé e razão, para conciliar um Deus onipotente com um mundo imperfeito, Santo Agostinho buscava coisas positivas em coisas ruins, pois isso refletiria de alguma forma a vontade de Deus. Santo Agostinho procurava lógica nos infortúnios, nas imperfeições do mundo, buscando justificá-los dizendo que refletiam a vontade de Deus.

A ESTRATÉGIA DE SANTO AGOSTINHO PARA CONCILIAR O ESTADO (CÉSAR) E A IGREJA (DEUS):

No seu esforço para tentar conciliar Deus e Estado Agostinho escreveu a obra "Cidade de Deus", na qual declara que só há um Deus e só há um Estado (Cesar), e você deve obediência aos dois. 

Mas como servir a dois senhores simultaneamente? Como ser leal a dois senhores? Como ser simultaneamente leal a Deus e a César (Estado)? Uma pessoa então teria que se equilibrar entre esses dois poderes, o terreno, representado pelo Estado, e o celestial, representado por Deus. 

Esse equilíbrio é então "a maior das tarefas estratégicas, pois exige alinhar capacidades humanas limitadas com uma aspiração - a vida após a morte - sem limites." (página 101)

Para buscar esse equilíbrio, Santo Agostinho buscava conciliar a Fé com a Razão. Para isso, ele buscava criar um guia de comportamento, um checklist que deveria ser seguido pelas pessoas, na condução/direção de suas vidas aqui na Terra (Cidade dos Homens). Se a pessoa agisse de acordo com as orientações de Santo Agostinho, ela então teria direito à vida eterna, podendo então entrar na Cidade de Deus. 

A obra "Cidade de Deus" é então é a tentativa de mostrar ao cristão como ele deveria agir para se equilibrar entre suas obrigações terrenas, em relação ao Estado, e suas obrigações com Deus, de forma a salvar a sua alma. 

Ao agir, o homem deveria equilibrar suas ações entre, fazer suas escolhas, entre as seguintes polaridades:

ORDEM - JUSTIÇA

GUERRA - PAZ

CÉSAR (ESTADO) - DEUS

"A Cidade de Deus é uma estrutura frágil dentro da pecaminosa Cidade dos Homens." (página 103)

AS JUSTIFICATIVAS DE SANTO AGOSTINHO PARA A GUERRA, O ESTADO E A ORDEM:

Santo Agostinho, na sua busca para conciliar a Fé com a Razão, buscou justificar a existência do Estado, da Guerra e da Ordem. 

- Existência do Estado:

Se Deus é Todo-Poderoso, por que há a necessidade da existência de um Estado? Santo Agostinho respondia dizendo que sem um Estado não haveria cristãos, e essa não podia ser a vontade de Deus.

De fato, não obstante períodos de perseguição, o Estado representado pelo Império Romano propiciou o desenvolvimento do cristianismo, inclusive reconhecendo-o, por meio do então Imperador Constantino. 

Agostinho tinha motivos de sobra para pensar dessa forma. Ele temia que a decadência do Império Romano, então tomado pelas invasões bárbaras (Roma foi saqueada pelo Visigodo Alarico, em 410 d.C), viesse a colocar em risco o próprio cristianismo. Santo Agostinho temia que o cristianismo, sem um Estado forte que o protegesse, submergisse diante das invasões dos bárbaros.

"Uma fé pacífica - a única forma de justiça para os cristãos - não pode florescer sem alguma forma de proteção proporcionada por um Estado." (página 103)

- A Ordem deve preceder a Justiça:

Diante então dessa desordem verificada no século V, com o Império Romano sendo invadido por povos bárbaros, Santo Agostinho procurou justificar que a Ordem deveria preceder a Justiça.

"Estabeleceu-se, então, que a ordem deve preceder a justiça, pois direitos podem existir mesmo sob terror constante." (página 103)

- Existência da Guerra:

Santo Agostinho foi o primeiro cristão a criar exceção para a  conduta de dar a outra face após ser ofendido/agredido. O cristão não deveria dar a outra face e sim lutar e, se necessário, matar o seu inimigo. Em seguida, Santo Agostinho estabeleceu um guia para justificar o emprego da guerra:

- teria ocorrido uma provocação?

- seria o recurso à violência um meio escolhido, não um fim em si mesmo?

- seria o uso da força proporcional a seu propósito de forma a não destruir o que deveria defender?

- teria a autoridade competente esgotado todas as alternativas pacíficas?

CONCLUSÃO:

A estratégia de Santo Agostinho, para um cristão conciliar suas obrigações com o Estado e com Deus, para conciliar as suas aspirações (ilimitadas) à Justiça, à Paz e à Vida Eterna com as realidades mundanas (capacidades limitadas) da Ordem, da Guerra e do Estado, baseava-se na adoção da PROPORCIONALIDADE, isto é, "os meios devem ser adequados, ou, pelo menos, não prejudiciais aos fins almejados." (página 107)

A ESTRAGÉGIA DE MAQUIAVEL:

Maquiavel tinha várias diferenças em relação a Santo Agostinho. Primeiro de tudo, Maquiavel não era santo. Ao contrário de Santo Agostinho, dizia que "DEUS NÃO QUER DECIDIR TUDO."

Contrariando ainda mais Santo Agostinho, Maquiavel nunca tentou restringir o livre-arbítrio do ser humano nos limites de sua razão. Com efeito, o livre-arbítrio de Santo Agostinho estava limitado pela razão, na medida em que as escolhas que o homem fazia entre Deus e César (Estado), entre a Justiça e a Ordem e entre a Paz e a Guerra, deveriam ser feitas sempre por meio da Razão, seguindo as instruções dadas por ele mesmo, isto é, retiradas de seus ensinamentos. Se assim agisse, o homem salvaria a sua alma e teria direito à vida eterna. 

Então, contrariando frontalmente o pensamento de Santo Agostinho, Maquiavel dizia:

"Deus não quer decidir tudo. Para que nosso livre-arbítrio não se anule e parte de nossa glória dependa de nós." (página 109).

Num mundo religioso como o do século XVI,  dizer que Deus não queria decidir tudo, era revolucionário. Se Deus não queria decidir sobre tudo que acontecia no mundo, abria para o ser humano a chance de atuar para corrigir a direção das coisas. Dessa forma, ao contrário de Santo Agostinho, Maquiavel não via o mundo como algo predeterminado.  

Maquiavel dava como exemplo um Estado governado erroneamente, no qual a cobiça dos homens logo irá destruí-lo, quer por uma revolta interna, quer por uma guerra externa. Mas se um Estado for governado com sabedoria, ele poderá obter bons resultados, como no caso de uma cidade que, para evitar enchentes, constrói diques, comportas e barragens, de forma a regular as cheias de um rio. Para Maquiavel, eram os homens que deveriam agir para evitar que uma cidade fosse destruída por uma enchente, por meio de obras de engenharia, e não ficar esperando pela boa vontade de Deus, afinal de contas, Deus não quer decidir tudo.

ESTRATÉGIAS QUE UM GOVERNANTE DEVERIA ADOTAR, SEGUNDO MAQUIAVEL:

Primeiramente, já que Deus não queria decidir sobre tudo, então o governante não precisaria, ao tomar uma decisão, buscar discernir a vontade de Deus. Seria presunçoso e temerário se um governante, antes de agir, ficasse perquirindo sobre qual seria a vontade de Deus no tratamento de um determinado assunto. 

A estratégia de Maquiavel também pode ser resumida na adoção da proporcionalidade, entendida esta na ideia de que o homem deve fazer o que é exigido de acordo com a necessidade, mas não à sua mercê em todos os aspectos. (página 113)

RESUMO DAS DIFERENÇAS DAS ESTRATÉGIAS DE SANTO AGOSTINHO E MAQUIAVEL:

SANTO AGOSTINHO buscou estratégias para se defender do caos na Terra e das labaredas do inferno

MAQUIAVEL buscou estratégias para se esquivar do governantes e Estados incompetentes

SANTO AGOSTINHO buscou razão num único Deus

MAQUIAVEL elaborou sua estratégia ignorando Deus

SANTO AGOSTINHO criou uma cidade imaginária num livro

MAQUIAVEL preparou um guia para os príncipes de como governar seus Estados


ANOTAÇÕES EXTRAÍDAS DA LEITURA DO LIVRO "AS GRANDES ESTRATÉGIAS, DE SUN TZU A FRANKLIN ROOSEVELT, COMO OS GRANDES LÍDERES MUDARAM O MUNDO", DE JOHN LEWIS GADDIS, EDITORA CRÍTICA.



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