sábado, 7 de agosto de 2021

Turcomenistão Sovietistão



ORIGEM DO TURCOMENISTÃO:

Tribos turcomenas chegaram ao atual Turcomenistão há pelo menos 1000 anos, junto com outros povos turcos emigrados da Sibéria oriental (página 51)

Até o século XIX, quando os russos chegaram, não havia uma Nação Turcomena. A ideia de um Turcomenistão como país não existia. Havia ali apenas tribos dispersas. 

"Conceitos como cultura e nacionalidade, fronteiras geográficas, até mesmo a língua turcomena, se originaram na era soviética." (página 51)

 ASHGABAT - CAPITAL DO TURCOMENISTÃO:

Uma cidade no meio do deserto. Em 1881, a Rússia czarista, fundou um quartel ali. Em 1948, um terremoto destruiu a cidade. O governo da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), da qual o Turcomenistão fazia parte, reerguei a cidade.

Ruas desertas. Blocos de prédios de mármore branco. Avenidas com oito faixas de rolamento, mas com poucos carros. 

"Os carros, que podiam ser contados numa só mão, estavam impecavelmente limpos. Os Mercedes eram a absoluta maioria. Pelas largas calçadas não se viam pessoas, exceto um policial de quando em vez, ..." (página 35)

DITADURA:

Não há democracia no Turcomenistão. O Turcomenistão é uma ditadura. Desde o seu desligamento da URSS, em 1991, o Turcomenistão teve dois ditadores:

1) Saparmurat Niyasov, conhecido como Turkmenbashi, o Pai dos Turcomenos.: 

Nasceu em 1940, nos arredores de Ashgabat. Órfão, foi criado pelo tio. Adulto, estudou em Leningrado, atual São Petersburgo, onde se formou Engenheiro Elétrico. Em 1985, Gorbachev o nomeou Primeiro Secretário do Partido Comunista no Turcomenistão. 

Com a ruína da URSS, Niyasov foi eleito pelo Soviete Supremo de Ashgabat como Presidente do Turcomenistão.

"A maioria das pessoas que ocupavam posições importantes durante a era soviética se manteve em cargos equivalentes no novo Estado." (página 47)

O Turcomenistão permaneceu um Estado unipartidário. O único partido existente era o Partido Democrático do Turcomenistão, criado a partir do antigo Partido Comunista do Turcomenistão.

Niyasov tornou-se então um ditador de fato. A propaganda estatal vendia Niyasov como pai unificador do país. Em 1993, a propaganda estatal rotulou Niyasov como Pai dos Turcomenos (Turkmenbashi). 

"Escolas, ruas, vilas, mesquitas, fábricas, aeroportos, marcas de vodka, perfumes e até uma cidade inteira, Krasnovodsk, a antiga fortaleza russa à beira do mar Cáspio, agora passavam a se chamar Turkmenbashi." (página 47)

"As estátuas de Lênin e Marx foram efetivamente removidas da cena urbana e substituídas por estátuas banhadas a ouro do Turkmenbashi de terno e gravata." (página 48)

Em 1999, Niyasov foi nomeado Presidente vitalício do Turcomenistão. A megalomania de Niyasov não tinha limites. Niyasov declarou ser um profeta e descender diretamente de Alexandre, o Grande, e do próprio Maomé. 

"O poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente, observou o historiador britânico Lord Acton em seu tempo. Poucos exemplos ilustram isso melhor do que a trajetória do Turkmenbashi. Como o órfão Saparmurat Niyasov se converteu no Turkmenbashi, um ditador que proibiu desde circos até cachorros, e mandou aprisionar todos os seus opositores? Uma explicação está no sistema soviético - corrupto, autoritário e marcadamente personalista. O Turkmenbashi cresceu nesse sistema e se sentia à vontade nele. Quando a União Soviética se desintegrou, não havia mais quem pudesse detê-lo. Ele podia fazer o que bem entendesse." (página 53)

Os demais políticos estavam também acostumados à subserviência existente no sistema soviético e assim continuaram sob o governo ditatorial turcomeno. 

O país, apesar de rico em gás, não investia em educação, tampouco em saúde. Para camuflar a miséria, "...os médicos eram proibidos de fazer diagnósticos de doenças como AIDS ou tuberculose." (página 54)

Professores não podiam dar notas ruins. Enfim, tudo era feito para camuflar a realidade. E isso Turkmenbashi aprendeu com os soviéticos, fazendo com que a realidade que não correspondesse às expectativas fosse manipulada, de forma a torná-la palatável para o consumo interno.

Em 2006, Niyasov foi destronado pela única força capaz de destituir um Ditador como ele: a Biologia. Niyasov sofreu um infarto agudo e morreu aos 66 anos.

A ditadura de Niyasov durou 21 anos, sustentada por um aparelho repressor impiedoso e por algumas benesses dadas ao povo, como a gratuidade de alguns serviços (eletricidade, sal de cozinha, gás, gasolina).

"Quando uma resposta é o chicote, a outra costuma ser a cenoura." (página 56)

2) Gurbanguly Berdimuhamedov: 

Sucessor de Niyasov, manteve a ditadura de seu antecessor. Nascido em 1957. Estudou odontologia em Moscou. Em 1997, foi nomeado Ministro da Saúde. Em 2001, assumiu o segundo cargo mais importante do país, o de Vice Primeiro Ministro. Quando Niyasov morreu em 2006, Gurbanguly assumiu o poder. No poder, Gurbanguly não só manteve a mão de ferro sobre o Turcomenistão como a aperfeiçoou. 

DESERTO DE KARAKUM:

O deserto de Karakum ocupa 70% do território do Turcomenistão. Karakum significa "areia preta" (página 69)

"O deserto de Karakum era considerado um dos trechos mais perigosos da Rota da Seda." (página 69)

"Antes que navios e aviões passassem a transportar pessoas e mercadorias entre continentes, a Ásia Central era o elo entre o Oriente e o Ocidente." (página 95)

E esse elo entre o Oriente e o Ocidente era chamada de a Rota da Seda, na qual caravanas carregadas com produtos como seda, papel, cerâmica, pimenta, provenientes da Índia e da China, chegavam ao Império Romano. 

Esse comércio acabou por enriquecer várias cidade da Ásia Central, uma delas atendia pelo nome de Merv, no atual Turcomenistão Oriental. Hoje resta pouco da cidade original, pelo fato de ter sido construída com o solo argiloso local. Muralhas, por exemplo, viraram elevações na paisagem.

No ano de 1221, o exército de Gengis Khan devastou a cidade, com 90% de sua população sendo morta. Naquela época, Merv fazia parte da Corásmia, um reino que abrangia grande parte do Afeganistão, Irã, Uzbequistão e Turcomenistão. 

Tribos inamistosas habitavam Karakum e assaltavam as caravanas que faziam a rota da seda. Havia ainda verões implacáveis e, no inverno, tempestades e tormentas traiçoeiras. 

O VERDADEIRO TURCOMENISTÃO:

Mais da metade da população vive em pequenos assentamentos e aldeias no deserto, vivendo "das mãos para a boca." (página 72)

São pessoas miseráveis, que vivem com poucos utensílios, vivendo da terra, com seus camelos e cabras, apartados da economia movida a gás natural. 

"Esses agricultores pobres vivem e morrem em suas aldeias, distantes das classes mais abastadas e ignorados pelo Estado, que se concentra nas cidades, nas usinas de gás e nas residências de mármore onde vive a elite política." (página 73)

PAIXÕES DO TURCOMENOS:

Os habitantes do Turcomenistão têm duas paixões: Cavalos e Tapetes. Os turcomenos têm uma relação quase religiosa com os seus cavalos, principalmente a raça Ahal Teke, considerada como uma das mais antigas do mundo e reconhecida por sua resistência.

NUMA DITADURA, O DITADOR DECIDE QUE O QUE HAVIA ACONTECIDO NÃO ACONTECEU:

A autora do livro nos relata uma história que demonstra bem o que é viver sob uma ditadura. Ela foi convidada a assistir um evento num Hipódromo nas proximidades de Ashgabat.

Nesse evento, o ditador do país, Gurbanguly, montou num cavalo e passou a disputar uma corrida. Em dado momento, o cavalo que levava o ditador refugou, jogando-o no chão. O que se passou a seguir foi uma correria para contornar a situação, de forma a mostrar que o que havia acontecido, o que todo mundo tinha visto, isto é, a queda do Ditador, não aconteceu. Agente de segurança correram para apreender máquinas fotográficas, câmeras. Mesmo com todo esse cuidado, alguém conseguiu filmar a queda do ditador e postar no Youtube. Sorte do ditador que o Youtube é proibido no Turcomenistão.

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https://www.youtube.com/watch?v=pIkurFloebs


ANOTAÇÕES EXTRAÍDAS DA LEITURA DO LIVRO "SOVIETISTÃO", UMA VIAGEM PELO TURCOMENISTÃO, CAZAQUISTÃO, TADJIQUISTÃO, QUIRGUISTÃO E UZBEQUISTÃO, ERICA FATLAND, EDITORA ÂYINÉ



quinta-feira, 29 de julho de 2021

Genocídio de Ruanda 1994 Tútsis Hútus




MITO DAS ORIGENS DOS TÚTSIS, HÚTUS E TWAS:

De acordo com o Mito oralmente transmitido de geração em geração, os Hútus (Gahutu), os Tútsis (Gatutsi) e Twas (Gatwa) seriam filhos daquilo que teria sido o primeiro homem, "...irmãos, uma única semente, um único sangue." (página 25)

Ainda segundo o mito, o deus Imana teria colocado esses três irmãos para competirem entre si, sempre acontecendo de Gatutsi se sair melhor nessa competição. Dessa forma, o próprio mito tratou de estabelecer uma diferença hierárquica entre Tútsis (Gatutsi), Hútus e Twas.

A HISTÓRIA REAL SOBRE OS TÚTSIS, HÚTUS E TWAS:

A origem dos Tútsis remonta ao século XV. Eram criadores de gado vindos das terras que hoje constituem a atual Etiópia. Como o gado simbolizava a força e o poder, os Tútsis acabaram por se constituir na aristocracia local. 

"Quase todos os livros sobre Ruanda falam a respeito disto, mas é preciso reiterar: o Rei de Ruanda, Mwami, sempre foi um Tútsi. Alguns estudiosos da cultura afirmam que isso ocorre pelo menos desde a passagem do século XI para o XII, quando Gihanga, o criador do país, e da bovinocultura, estava no trono. Mas a maioria dos historiadores inclina-se à teoria de que os Tútsis vieram para cá das terras da atual Etiópia, pela bacia do Nilo, no século XV. Eles trouxeram as vacas. " (página 26)

Abaixo dos Tútsis, havia os Hútus e os Twas, habitantes originais do que hoje é Ruanda. Os Hútus eram camponeses e os Twas viviam da coleta e do trabalho na terra. 

"O pastor Tútsi era o patrão do Hútu. Dava ao camponês proteção e estabilidade." (página 27)

Apesar essa diferença no status social, Tútsis, Hútus e Twas formavam uma mesma comunidade, que atendia pelo nome de Banyarwanda. 

"Todos falam a mesma língua, creem nas mesmas coisas, comem a mesma comida, constroem da mesma maneira e moram do mesmo jeito. Na mesma terra." (página 25)

A mesma terra, leia-se, a atual Ruanda, no centro da África. 

"Uma comunidade, uma nação. Mas dividida - como talvez disséssemos na Europa - em classes ou estados sociais. Não em grupos étnicos." (página 28)

Talvez ainda Tútsis, Hútus e Twas poderiam ser enquadrados no modelo de castas no estilo existente na Índia.

ÉPOCA DA COLONIZAÇÃO EUROPEIA NA ÁFRICA:

Antes da colonização europeia, não havia conflitos importantes entre Tútsis, Hútus e Twas. 

"Quando era necessário lutar em nome do rei, todos lutavam juntos." (página 34)

Os primeiros colonizadores europeus, onde hoje situa-se o moderno Estado de Ruanda, foram os alemães. Com o final da Primeira Guerra Mundial, os alemães foram substituídos pelos belgas.

E foram os belgas que dividiram os Tútsis, Hútus e Twas em termos raciais. Nesse novo contexto, os Tútsis então seriam, na visão dos colonizadores europeus, os "...inteligentes, delicados, belos, não totalmente brancos, mas também não totalmente negros." (página 36)

Os Tútsis, ouviram dos colonizadores europeus que, ao contrário dos seus vizinhos, os Hútus, não eram macacos e, rapidamente, passaram a acreditar em sua superioridade. Os Tútsis passaram a se ver como uma raça superior. 

Já os Hútus foram rotulados como sendo os negros na acepção do termo, com seus olhos que pareciam com os de um chimpanzé, o nariz achatado, etc. E, por fim, havia o pequeno grupo dos Twas, que era constituído pelos pigmeus, que viviam geralmente na floresta, como coletores.

"O colonizador belga completou esse trabalho no início dos anos 30, quando introduziu os documentos de identidade de Ruanda. Esse fato é considerado o momento da divisão definitiva. Desde aquela época, até o genocídio de 1994, todos os ruandeses tinham sua raça inscrita na carteira de identidade: Tútsi, Hútu ou Twa." (página )

INDEPENDÊNCIA DE RUANDA:

Os Tútsis governavam Ruanda, então uma colônia belga. Quando os Tútsis começaram a declarar o desejo de independência, os belgas se uniram aos Hútus para derrubar o governo Tútsi. 

Com os Hútus no poder, os Tútsis começaram a deixar Ruanda (década de 50 do século XX). Nessa mesma época, os Tútsis que ficaram passaram a ser alvos de perseguição, um embrião do que seria o Genocídio de 1994.

A independência de Ruanda veio em 1962, sob o comando dos Hútus. Mas os Hútus não apenas governavam Ruanda, como brigavam entre si. Em 1973 houve um golpe de estado, com a instauração de um regime de partido único, representado pelo partido Hútu, com a Presidência de Juvénal Habyarimana.

Os Tútsis que tinham se exilado de Ruanda, enquanto isso, criaram a Frente Patriótica Ruandesa - RPF (Rwandan Patriotic Front). "

Entre os líderes da RPF, estava o atual Presidente de Ruanda (quando esse livro foi escrito), Paul Kagame.

O objetivo da RPF era retomar o país. Para isso, empreenderam uma guerrilha, que começou em outubro de 1990. 

CONTAGEM REGRESSIVA PARA O GENOCÍDIO DE 1994:

Em Ruanda, no início dos anos 90 do século XX, os partidários de Juvénal Habyarimana criaram uma atmosfera de medo pela aproximação da RPF da capital do país, Kigali. O medo se estendia para os Tútsis locais, que então passaram a ser vistos como uma espécie de quinta coluna da RPF, esperando pela chegada dos guerrilheiros da RPF. 

Em resposta a essa ameaça, os Hútus, com a ajuda do governo do país, criaram uma milícia, a Interhamwe, que significa Unidade. Era composta por pessoas comuns. Tinha por objetivo eliminar os Tútsis de Ruanda. A iniciativa para a criação da Interhamwe veio do clã do Presidente Juvénal Habyarimana. 

Com o decorrer da guerra, a RPF passou a ocupar uma parte do território de Ruanda, no qual também cometia atrocidades contra os Hútus locais. 

Em 1993, uma iniciativa para pacificar Ruanda, tendo a ONU como intermediária, tentou estabelecer um sistema de convívio pacífico entre o governo Ruandês, governado pelos Hútus, e a guerrilha Tústi representada pela RPF. Na esteira dessa tentativa de pacificar Ruanda, um governo provisório foi criado. O Presidente Juvénal Habyarimana permitiu a participação de partidos de oposição. Mas ao tempo que essas iniciativas eram colocadas em prática, na surdina, o governo Hútu elaborava listas com nomes de Tútsis que deveriam ser eliminados. Dinheiro do governo importou milhares de facões da China que seriam usados no Genocídio de 1994. A Rádio Mil Colinas, enquanto isso, amedrontava a população Hútu, dizendo que os rebeldes da RPF estavam se aproximando da capital do país, Kigali. A Rádio ainda espalhava que os guerrilheiros da RPF iriam estuprar as mulheres dos Hútus e iriam confiscar suas terras.

ESTOPIM DO GENOCÍDIO DE 1994:

Com esse pano de fundo, descrito acima, veio então aquilo que constituiu o estopim que deu início ao Genocídio de 1994. Na noite de 6 de abril de 1994, o avião que trazia a bordo o então Presidente do país, Juvénal Habyarimana, foi derrubado, quando sobrevoava a capital Kigali. Até hoje não se sabe o autor do atentado, mas na época todos culparam os Tútsis.

Então, todo o medo, todo o ódio e preconceitos, represado por anos, foi liberado, com os Hútus saindo à caça dos Tútsis, dando origem ao Genocídio dos Tútsis pelos Hútus  no ano de 1994.

"As crianças, antes de morrer, tinham de olhar suas mães serem estupradas (os netos - suas avós serem estupradas). Os homens olhavam suas esposas serem estupradas (os avós - suas netas). E enfiarem garrafas entre suas pernas. Era assim que com mais frequência matavam as mulheres tútsis: com um golpe na barriga e embaixo. Antes de morrerem assistiam à morte de seus filhos. E de seus pais também."(página 16)

ANOTAÇÕES EXTRAÍDAS DA LEITURA DO LIVRO "HOJE VAMOS DESENHAR A MORTE", W.L. TOCHMAN, EDITORA ÂYINÉ



segunda-feira, 19 de julho de 2021

Papas Perversos Doação de Constantino Synod Horrenda



PARTE 1

ROMA:

A tradição conta que a cidade de Roma foi fundada por Rômulo, no ano de 443 após a queda de Tróia. 

No século III d.C., o Imperador Aurélio construiu grandes muralhas para cercá-la, protegendo-a de seus inimigos. 

Fora dessas muralhas e do outro lado do Rio Tibre, nas encostas da colina do Vaticano, uma nova era começava. Era o cristianismo que ganhava força e seguidores e que viria a dominar "Roma nos seus anos vindouros." (página 13)

Na área que compreendia a Colina do Vaticano uma nova cidade viria a ser construída, na qual Nero iria construir uma área de lazer, "...onde no seu famoso Circo, e segundo a tradição cristã, o Apóstolo Pedro foi crucificado durante aquela noite de insana crueldade de 64 d.C..."(página 14).

Então, na mesma área em que Pedro foi sepultado, por volta do ano 160 d.C., "...um santuário humilde mas identificável marcava a sepultura, sobre a qual foi construída a primeira Basílica de São Pedro no começo do século IV." (página 14)

No início do século IX, a Basílica de São Pedro já contava com uma riqueza formidável. Mas mesmo com toda essa riqueza, ela permanecia desprotegida, fora das muralhas que protegiam a cidade de Roma. Aproveitando-se disso, os Sarracenos, no ano de 846, lançaram um ataque a Roma. A cidade de Roma, graças às suas muralhas, passou ilesa, mas a contígua região do Vaticano, que não era protegida, foi saqueada. As riquezas da Basílica de São Pedro foram saqueadas pelos muçulmanos. 

Apesar da Basílica de São Pedro situar-se no subúrbio de Roma, nas Colinas do Vaticano, por um bom tempo a sede da Igreja Católica, isto é, a residência do Bispo de Roma, o Papa, ficava em Roma, no Palácio de Latrão (do século IV até o século XIV). O Palácio de Latrão, originalmente, pertencia a uma rica família romana, os Laterani, daí o nome Latrão. Depois, o Palácio passou para as mãos do Imperador Constantino, que, por sua vez, depois de sua conversão ao Cristianismo, o repassou/doou para os Bispos de Roma.

"O Palácio de Latrão desempenhou seu papel honroso, embora limitado, como residência do Bispo de Roma durante uns 400 anos. Depois, em finais do século VIII, o elo tênue que ligava o Imperador à sua cidade titular foi quebrado, começando o Papado o longo caminho do domínio temporal e fazendo de Latrão o centro do domínio romano." (página 17)

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O Imperador citado acima é o do Oriente. Trata-se do Império Romano do Oriente, com sede em Constantinopla, que deu origem ao Império Bizantino. A partir do Século VIII, portanto, os romanos do ocidente, com sede em Roma, começaram a se desvincular dos romanos do oriente, com sede em Constantinopla, antiga Bizâncio. 

PARTE 2

SEPARAÇÃO DOS ROMANOS DO OCIDENTE DOS ROMANOS DO ORIENTE:

"Em 328 d.C., Constantino transferiu a capital do Império Romano para a nova cidade de Constantinopla, alterando assim, inevitavelmente, o centro de gravidade do mundo romano. Gradualmente, o trono imperial foi ocupado exclusivamente por gregos, o latim cedeu lugar ao grego como língua oficial,..." (página 18)

Com a queda do Império Romano do Ocidente, a península itálica se viu repartida entre os novos reinos bárbaros e algumas áreas nas quais reinava o Império Romano do Oriente, com sede na cidade de Constantinopla, atual Istambul, na Turquia. Um desses locais que ainda eram dominados pelo Império Romano do Oriente era a cidade de Roma e seu entorno. O Bispo de Roma e os nobres locais, como resultado disso, eram súditos do Império Romano do Oriente, buscando nele a sua legitimidade. 

"Os grandes se irritavam sob o jugo. Era humilhante para o Bispo de Roma poder ser convocado a Constantinopla como qualquer funcionário." (página 19)

O Império Romano do Oriente, por meio de seu Imperador, exercia conjuntamente o poder secular e o poder espiritual. O Imperador então podia se meter em assuntos de Estado e em assuntos da Igreja. Por esse motivo, o Bispo de Roma se encontrava subordinado às ordens dadas pelo Imperador em Constantinopla, fossem elas sobre assuntos de Estado, fossem elas sobre assuntos religiosos. 

A relação entre Constantinopla e Roma ia bem até que, no ano de 726 d.C. (século VIII), um Édito iconoclasta, da lavra do Imperador Leão III, resultou numa oposição ferrenha por parte do Bispo de Roma. E os cristãos da Península Itálica se uniram ao Bispo de Roma nessa oposição ao Édito iconoclasta de Leão III.

Esse Édito de Leão III, que causou tanto descontentamento no Ocidente romano, dizia respeito à necessidade de se acabar com a adoração de imagens. A devoção às imagens deveria acabar em toda a cristandade. O Édito então ordenava que as imagens fossem destruídas em todo o Império, tanto no Oriente como no Ocidente. 

O Bispo de Roma, naquela altura, era Gregório II. Como já dito acima, ele protestou veementemente contra a destruição das imagens, dizendo que os cristãos não tinham trazido de volta a idolatria da Antiguidade, asseverando que os cristãos, ao contrário do que dizia Leão III, não adoravam as imagens, mas apenas "honravam-nas como memórias..." (página 20)

Por fim, o conflito em torno do Édito mencionado acima acabou descambando para uma guerra. Em 731, deu-se então uma cisão, com o Império Romano do Oriente perdendo influência e poder sobre a Itália.

"O Imperador (Romano do Oriente) e os seus teólogos eram rejeitados pela Itália e era inevitável que o Bispo de Roma preenchesse o vácuo de poder criado." (página 21)

PARTE 3

A DOAÇÃO DE CONSTANTINO

Aquilo que ficou conhecido como a "Doação de Constantino", foi na verdade uma falsificação feita por um funcionário papal, que atendia pelo nome de Cristóforo. 

Cristóforo pretendia criar uma narrativa por meio da qual a coroa do Império Romano iria para o Papa. Para tanto, Cristóforo baseou-se na figura lendária de São Silvestre.

Conta a lenda que o então Imperador Romano Constantino teria ficado doente, vitimado pela Lepra. Então Constantino teria tido uma visão, na qual lhe foi dito para chamar São Silvestre, que era então o líder dos cristãos em Roma. Pela visão, somente São Silvestre poderia curá-lo. Então São Silvestre foi se encontrar com Constantino, ao qual recomendou que se batizasse. Após ser batizado, como que por um milagre, Constantino curou-se da lepra e, como pagamento, ordenou que Cristo fosse adorado em todo o Império Romano. Ordenou ainda a arrecadação de dízimos para a construção de Igrejas pelo Império e ainda doou o Palácio de Latrão para São Silvestre e para os bispos de Roma que viessem a sucedê-lo. 

"A lenda, embora fantasiosa na atribuição do motivo (cura da lepra de Constantino), não se afasta muito dos pormenores conhecidos do fato - a doação do Palácio de Latrão, a construção de basílicas, a suprema condição religiosa atribuída à Cristandade." (página 22/23)

Mas a narrativa de Cristóforo foi além disso, colocando na boca de Constantino o que ele não disse, buscando assim dizer que Constantino teria transferido a coroa imperial romano para São Silvestre e para os bispos que viriam a sucedê-lo. 

"Cristóforo fez parecer que a Coroa Imperial havia sido realmente dada a São Silvestre, mas que este a recusara por não ser adequada para o detentor do ministério espiritual, e, em vez disso, havia aceitado um simples barrete frígio branco, humilde antecessor da grande tiara tripla. No entanto, o fato de a Coroa Imperial ter sido oferecida implicava que Constantino a viria possuir somente com a permissão do Papa." (página 23)

A Doação de Constantino foi usada a favor do Papado quando a Itália se viu acossada pelas invasões do Lombardos. Paralelamente a isso, o Império Romano do Oriente perdia força na Itália, vendo seus territórios sendo tomados pelos Lombardos. 

Em meio a tudo isso, o Bispo de Roma, o então Papa Estevão, resolver ir pedir ajuda ao reino dos Francos. Dessa forma, no ano de 755 d.C. (século VIII), Papa Estevão atravessou os alpes e foi se encontrar com o rei dos Francos, Pepino. Com sua lábia e com a Doação de Constantino a tiracolo, Papa Estevão conseguiu fazer de Pepino seu aliado contra os Lombardos. Os Francos então invadiram a Itália e derrotaram os Lombardos. Ainda ignoraram o pedido de ajuda dos Bizantinos. Pepino, com efeito, só tinha um aliado na Itália: o Papado. Assim, Pepino, acreditando na narrativa da Doação de Constantino, concedeu ao Papa o que viria a se tornar os Estados Papais, também conhecido como patrimônio de São Pedro. Essa concessão de terras dos Francos para o Papado foi feita com base na falsificação da Doação de Constantino, convertendo o Papa num senhor feudal, conferindo ao seu cargo um valor financeiro. O Papa então passou a possuir não só as chaves do céu como as chaves de várias cidades, que se encontravam  no interior dos Estados Papais. Com todo esse poder financeiro e espiritual nas mãos, o cargo de Papa passou a ser ambicionado pelos poderosos da época. 

Com o novo status adquirido, a posição de Papa passou a ser disputada por meio de lutas que redundaram até em assassinatos. Matava-se e morria-se pelo cargo de Papa.

Luta de vida e morte para se tornar Papa:

Um exemplo dessa luta pode ser encontrada num evento, que passou para a história com o nome de Synod Horrenda

A luta pelo cargo de Papa, como dito acima, se tornou tão disputada, que chegou-se ao cúmulo de se realizar o julgamento de um Papa que já tinha morrido. 

Assim, no ano de 896 (século IX), durante aquilo que se passou a chamar de Synod Horrenda, o então Papa Estevão VII decidiu realizar o julgamento de seu antecessor e inimigo, o Papa Formoso, que já tinha morrido. Estevão VII mandou que o corpo de Formoso fosse desenterrado e trazido para julgamento. Então foi encenado um julgamento, com a presença do cadáver desenterrado de Formoso. O objetivo de Estevão VII, ao vilipendiar a memória de Formoso, era o de atacar os aliados deste, que ainda estavam vivos e ativos e que lhe faziam oposição. Estevão VII e Formoso, com efeito, faziam parte de facções opostos, que se odiavam e que lutavam pelo cargo de Papa. 

E havia mais um benefício para quem se tornava Papa, pois o Papado contava agora com a proteção do monarca germânico. Num primeiro momento, quando ainda era vivo Carlos Magno, então Rei dos Francos, filho de Pepino, no ano de 800 d.C. ele foi Coroado Imperador do Ocidente, pelo então Papa Leão III. A partir do ano 800 havia dois Impérios, um do Ocidente, com sede na cidade alemã de Aachen, e aquele do Oriente, com sede em Constantinopla.

Com a criação do Império do Ocidente, que viria a se tornar no futuro o Sacro Império Romano Germânico, o Imperador e o Papa passaram a ser vistos como os dois vigários de Cristo, o primeiro brandindo a espada temporal, enquanto o segundo brandia a espada espiritual, num Império Sagrado. A relação entre esses dois vigários de cristo iria se mostrar extremamente tumultuada. 

ANOTAÇÕES EXTRAÍDAS DA LEITURA DO LIVRO "PAPAS PERVERSOS", RUSSEL CHAMBERLIN, A HISTÓRIA COMO ROMANCE, EDITORA EDIÇÕES 70



quarta-feira, 7 de julho de 2021

A Família Burguesa A Inimiga do Comunismo O Comunismo exigia um novo tipo de Ser Humano



NOCIVIDADE SOCIAL DA FAMÍLIA BURGUESA:

Para os comunistas, a nocividade social da família burguesa era uma verdade inquestionável. (página 43)

Depois de vencerem a guerra civil, os bolcheviques se viam agora em uma nova arena de luta: a família burguesa.

"...ela (família burguesa) olhava para dentro de si própria e era conservadora, uma fortaleza da religião, da superstição, da ignorância e do preconceito; ela fomentava o egotismo e as aquisições materiais, além de oprimir mulher e crianças."

A família era o maior obstáculo, por exemplo, à socialização das crianças. Por amar a criança, a família a transforma num ser egotista. encorajando-a se ver como o centro do universo. (página 43)

Esse amor egotista, fomentado no interior da família burguesa, deveria ser trocado pelo amor racional de uma família social mais ampla, que englobaria toda a comunidade, na construção de um modo de vida coletivo.

Era necessário eliminar os hábitos e costumes burgueses do Império Russo dos Romanov. 

"Uma guerra revolucionária pela liberação da personalidade comunista por meio da erradicação do comportamento individualista (burguês) e de hábitos fora dos padrões (prostituição, alcoolismo, vandalismo, religião), herdados da antiga sociedade." (página 42)

Os bolcheviques esperavam que a família desaparecesse conforme a Rússia soviética se desenvolvesse até se transformar em um sistema totalmente socialista, no qual o Estado assumiria a responsabilidade por todas as funções básicas do lar, oferecendo creches, lavanderias e refeitórios em centros públicos e em prédios residenciais. 

UM EXEMPLO DE UMA POLÍTICA COMUNISTA PARA DESINTEGRAR A FAMÍLIA BURGUESA:

UPLOTNIE (CONDENSAÇÃO): 

Era a política da condensação, por meio da qual as famílias seriam obrigadas a dividir suas casas com outras pessoas, combatendo o privilégio e as forçando a se tornarem comunistas (página 44). Essa política matava dois coelhos com uma paulada só. Primeiramente, resolvia o problema habitacional na grandes cidades, ajudando na propaganda do Partido Comunista, centrada no combate aos privilégios e projetando um modo de vida coletivo. Depois, com essa política, o Estado Soviético acreditava que forçando as pessoas no compartilhamento de espaços comunais, elas iriam se tornar naturalmente comunistas em seus pensamentos. A vida do indivíduo passaria a ser imersa na comunidade. 

"Enquanto isso, os bolcheviques adotaram diversas estratégias - como a transformação do espaço doméstico - cujas intenções eram acelerar a desintegração da família. Para lidar com a falta de casas nas cidades superlotadas, os bolcheviques forçaram famílias ricas a dividirem seus apartamentos com os pobres urbanos." (página 44)

"Durante a década de 20, o tipo mais comum de apartamento comunal era aquele em que os proprietários originais ocupavam os cômodos principais na parte da frente, enquanto os quartos dos fundos eram ocupados por outras famílias." (página 44)

"Naquela época, os proprietários antigos podiam selecionar os comoradores..." (página 44)

Seguindo ainda essa política, foram planejadas Casas Comunais - Doma Kommuny - nas quais tudo seria compartilhado, inclusive roupas íntimas. As tarefas domésticas, como cuidar das crianças e cozinhar, seriam designadas rotativamente a grupos. Todos ainda dormiriam em um grande dormitório, dividido por gênero, com quartos particulares reservados para as práticas sexuais. (página 45). 

Esse tipo de iniciativa visava a destruição da esfera privada na vida das pessoas. Essas construções foram planejadas por arquitetos russos que foram denominados de Construtivistas. Era a arquitetura a serviço da utopia comunista, que deveria afastar o indivíduo da esfera privada/burguesa, inserindo-o num modo de vida coletivo.

Todavia, poucas dessas casas foram construídas. Elas ficaram apenas no campo da utopia e de romances, como o romance futurista "Nós", de Yevgeny Zamiatin (página 45).

"Mas o objetivo continuava a ser dominar a arquitetura de modo a induzir o indivíduo a afastar-se das formas privavas (burguesas) de domesticidade, dirigindo-se a um modo de vida mais coletivo." (página 45)

"O espaço e a propriedade privada desapareceriam, a família individual (burguesa) seria substituída pela fraternidade e por organizações comunistas, e a vida do indivíduo passaria a ser imersa na comunidade." (página 44)

SONHO DOS BOLCHEVIQUES:

O Estado soviético assumiria o lugar das famílias.

A vida privada, para os comunistas, era inimiga do regime bolchevique.

PARTIDO COMUNISTA EM PRIMEIRO LUGAR:

Os comunistas eram ensinados a "colocar o comprometimento com o proletariado acima do amor romântico ou da família." (página 46)

Nesse sentido, uma vida promíscua seria melhor do que estabelecer uma família, que poderia levar seus membros a se afastarem da lealdade ao Partido Comunista. 

O Partido Comunista vinha em primeiro lugar nada poderia colocar em dúvida a lealdade a ele. A pessoa só devia verdadeiramente se comprometer com o Partido. Constituição de uma família, o amor romântico, tudo isso só servia para desviar as pessoas daquilo que realmente importava: a causa comunista. Família e amor romântico eram coisas de burguês. 

Coisas de burguês também eram as mobílias que guarneciam uma residência. Um comunista raiz deveria viver numa casa guarnecida somente por mobílias funcionais, necessárias. O homem soviético não poderia se deixar escravizar pelo consumismo. Era precisa levar uma vida ascética, abandonando o estilo de vida burguês, com seus perfumes, roupas elegantes, cosméticos, anéis, etc. 

RENUNCIAMOS AO ANTIGO MUNDO

TIRAMOS SUA POEIRA DE NOSSOS PÉS

(Internacional Comunista, página 53)

Um comunista deveria sentir vergonha de desfrutar de um bom café da manhã que seria inacessível para um simples trabalhador. 

O COMUNISMO EXIGIA UM NOVO TIPO DE SER HUMANO:

Enfim, como dito por Máximo Gorki, para que o Comunismo triunfasse, seria necessário a criação de uma Personalidade Coletiva, contrapondo-se à personalidade individual.

Na visão dos bolcheviques, "...o ativista revolucionário era um protótipo de uma nova espécie de ser humano - uma personalidade coletiva que viveria apenas pelo bem comum - que popularia o futuro da sociedade comunista. Muitos socialistas viam a criação desse tipo de ser humano como o objetivo fundamental da Revolução. 'A nova estrutura da vida política exige de nós uma nova estrutura da alma', escreveu Máximo Gorki na primavera de 1917." (página 38)

ANOTAÇÕES EXTRAÍDAS DA LEITURA DO LIVRO "SUSSURROS, A VIDA PRIVADA NA RÚSSIA DE STALIN", ORLANDO FIGES, EDITORA RECORD



terça-feira, 6 de julho de 2021

As Estratégias de Santo Agostinho e Maquiavel




O POLITEÍSMO E O MONOTEÍSMO:

No início da história humana vigorava o politeísmo. O medo daquilo que está além da compreensão humana é a fonte criadora das religiões, dos deuses. Desde sempre deuses e espíritos personificaram, materializaram as manifestações da natureza (raios, enchentes, temporais, vulcões, terremotos, eclipses, etc), doenças, etc. Enfim, tudo aquilo que se encontrava além da compreensão humana era materializado na forma de um deus, de um espírito. Daí surgiu a adoção do politeísmo na Antiguidade. Havia uma miríade de deuses e espíritos venerados e temidos pelos seres humanos. 

Enquanto vigorava o politeísmo, a religião se mostrava inofensiva para a administração dos Estados. 

"Os deuses passavam tanto tempo discutindo entre si que os mortais mantinham uma espécie de equilíbrio aqui na terra." (página 97)

Mas quando o monoteísmo superou o politeísmo, surgiram várias perguntas:

- as pessoas deviam obediência a César (Estado) ou a esse Deus único, onisciente e onipotente?

- o Estado agora precisaria da aprovação da Igreja para que seus atos fossem legitimados?

- a Igreja sobreviveria sem a proteção do Estado?

Para resolver essas questões foram elaboradas duas estratégias, uma por Santo Agostinho e outra por Maquiavel. 

SANTO AGOSTINHO BUSCAVA, ANTES DE TUDO, CONCILIAR RAZÃO E FÉ:

Como conciliar a ideia de um Deus onipotente e onisciente com o mundo imperfeito no qual vivemos, onde até um inocente bebê, na visão de Santo Agostinho, assume a forma de um verme voraz?

"Se os bebês são inocentes, não é por lhes faltarem o desejo de fazerem o mal, mas por lhes faltarem forças." (página 99)

Será por meio da Razão que Santo Agostinho tentará explicar essa contradição envolvendo um Deus onipotente e um mundo imperfeito. Esse mundo imperfeito estava nos pecados confessados pelo próprio Santo Agostinho, em seu livro "Confissões". A imperfeição do mundo ainda estava na decadência do Império Romano. Santo Agostinho vivenciou as invasões dos bárbaros, a tomada de Roma pelos visigodos de Alarico, no ano de 410. 

Nessa busca de tentar conciliar a onipotência de Deus com um mundo imperfeito, Santo Agostinho buscará, por exemplo, justificar a guerra, uma conduta obviamente pecaminosa do homem, mas que podia ser justificada, por meio do seguinte pensamento: a guerra existe porque Deus talvez quisesse punir o homem para o seu próprio bem ou, se ele fosse morto no campo de batalha, viesse a ser transportado para um mundo melhor.

Enfim. sua luta para conciliar fé e razão, para conciliar um Deus onipotente com um mundo imperfeito, Santo Agostinho buscava coisas positivas em coisas ruins, pois isso refletiria de alguma forma a vontade de Deus. Santo Agostinho procurava lógica nos infortúnios, nas imperfeições do mundo, buscando justificá-los dizendo que refletiam a vontade de Deus.

A ESTRATÉGIA DE SANTO AGOSTINHO PARA CONCILIAR O ESTADO (CÉSAR) E A IGREJA (DEUS):

No seu esforço para tentar conciliar Deus e Estado Agostinho escreveu a obra "Cidade de Deus", na qual declara que só há um Deus e só há um Estado (Cesar), e você deve obediência aos dois. 

Mas como servir a dois senhores simultaneamente? Como ser leal a dois senhores? Como ser simultaneamente leal a Deus e a César (Estado)? Uma pessoa então teria que se equilibrar entre esses dois poderes, o terreno, representado pelo Estado, e o celestial, representado por Deus. 

Esse equilíbrio é então "a maior das tarefas estratégicas, pois exige alinhar capacidades humanas limitadas com uma aspiração - a vida após a morte - sem limites." (página 101)

Para buscar esse equilíbrio, Santo Agostinho buscava conciliar a Fé com a Razão. Para isso, ele buscava criar um guia de comportamento, um checklist que deveria ser seguido pelas pessoas, na condução/direção de suas vidas aqui na Terra (Cidade dos Homens). Se a pessoa agisse de acordo com as orientações de Santo Agostinho, ela então teria direito à vida eterna, podendo então entrar na Cidade de Deus. 

A obra "Cidade de Deus" é então é a tentativa de mostrar ao cristão como ele deveria agir para se equilibrar entre suas obrigações terrenas, em relação ao Estado, e suas obrigações com Deus, de forma a salvar a sua alma. 

Ao agir, o homem deveria equilibrar suas ações entre, fazer suas escolhas, entre as seguintes polaridades:

ORDEM - JUSTIÇA

GUERRA - PAZ

CÉSAR (ESTADO) - DEUS

"A Cidade de Deus é uma estrutura frágil dentro da pecaminosa Cidade dos Homens." (página 103)

AS JUSTIFICATIVAS DE SANTO AGOSTINHO PARA A GUERRA, O ESTADO E A ORDEM:

Santo Agostinho, na sua busca para conciliar a Fé com a Razão, buscou justificar a existência do Estado, da Guerra e da Ordem. 

- Existência do Estado:

Se Deus é Todo-Poderoso, por que há a necessidade da existência de um Estado? Santo Agostinho respondia dizendo que sem um Estado não haveria cristãos, e essa não podia ser a vontade de Deus.

De fato, não obstante períodos de perseguição, o Estado representado pelo Império Romano propiciou o desenvolvimento do cristianismo, inclusive reconhecendo-o, por meio do então Imperador Constantino. 

Agostinho tinha motivos de sobra para pensar dessa forma. Ele temia que a decadência do Império Romano, então tomado pelas invasões bárbaras (Roma foi saqueada pelo Visigodo Alarico, em 410 d.C), viesse a colocar em risco o próprio cristianismo. Santo Agostinho temia que o cristianismo, sem um Estado forte que o protegesse, submergisse diante das invasões dos bárbaros.

"Uma fé pacífica - a única forma de justiça para os cristãos - não pode florescer sem alguma forma de proteção proporcionada por um Estado." (página 103)

- A Ordem deve preceder a Justiça:

Diante então dessa desordem verificada no século V, com o Império Romano sendo invadido por povos bárbaros, Santo Agostinho procurou justificar que a Ordem deveria preceder a Justiça.

"Estabeleceu-se, então, que a ordem deve preceder a justiça, pois direitos podem existir mesmo sob terror constante." (página 103)

- Existência da Guerra:

Santo Agostinho foi o primeiro cristão a criar exceção para a  conduta de dar a outra face após ser ofendido/agredido. O cristão não deveria dar a outra face e sim lutar e, se necessário, matar o seu inimigo. Em seguida, Santo Agostinho estabeleceu um guia para justificar o emprego da guerra:

- teria ocorrido uma provocação?

- seria o recurso à violência um meio escolhido, não um fim em si mesmo?

- seria o uso da força proporcional a seu propósito de forma a não destruir o que deveria defender?

- teria a autoridade competente esgotado todas as alternativas pacíficas?

CONCLUSÃO:

A estratégia de Santo Agostinho, para um cristão conciliar suas obrigações com o Estado e com Deus, para conciliar as suas aspirações (ilimitadas) à Justiça, à Paz e à Vida Eterna com as realidades mundanas (capacidades limitadas) da Ordem, da Guerra e do Estado, baseava-se na adoção da PROPORCIONALIDADE, isto é, "os meios devem ser adequados, ou, pelo menos, não prejudiciais aos fins almejados." (página 107)

A ESTRAGÉGIA DE MAQUIAVEL:

Maquiavel tinha várias diferenças em relação a Santo Agostinho. Primeiro de tudo, Maquiavel não era santo. Ao contrário de Santo Agostinho, dizia que "DEUS NÃO QUER DECIDIR TUDO."

Contrariando ainda mais Santo Agostinho, Maquiavel nunca tentou restringir o livre-arbítrio do ser humano nos limites de sua razão. Com efeito, o livre-arbítrio de Santo Agostinho estava limitado pela razão, na medida em que as escolhas que o homem fazia entre Deus e César (Estado), entre a Justiça e a Ordem e entre a Paz e a Guerra, deveriam ser feitas sempre por meio da Razão, seguindo as instruções dadas por ele mesmo, isto é, retiradas de seus ensinamentos. Se assim agisse, o homem salvaria a sua alma e teria direito à vida eterna. 

Então, contrariando frontalmente o pensamento de Santo Agostinho, Maquiavel dizia:

"Deus não quer decidir tudo. Para que nosso livre-arbítrio não se anule e parte de nossa glória dependa de nós." (página 109).

Num mundo religioso como o do século XVI,  dizer que Deus não queria decidir tudo, era revolucionário. Se Deus não queria decidir sobre tudo que acontecia no mundo, abria para o ser humano a chance de atuar para corrigir a direção das coisas. Dessa forma, ao contrário de Santo Agostinho, Maquiavel não via o mundo como algo predeterminado.  

Maquiavel dava como exemplo um Estado governado erroneamente, no qual a cobiça dos homens logo irá destruí-lo, quer por uma revolta interna, quer por uma guerra externa. Mas se um Estado for governado com sabedoria, ele poderá obter bons resultados, como no caso de uma cidade que, para evitar enchentes, constrói diques, comportas e barragens, de forma a regular as cheias de um rio. Para Maquiavel, eram os homens que deveriam agir para evitar que uma cidade fosse destruída por uma enchente, por meio de obras de engenharia, e não ficar esperando pela boa vontade de Deus, afinal de contas, Deus não quer decidir tudo.

ESTRATÉGIAS QUE UM GOVERNANTE DEVERIA ADOTAR, SEGUNDO MAQUIAVEL:

Primeiramente, já que Deus não queria decidir sobre tudo, então o governante não precisaria, ao tomar uma decisão, buscar discernir a vontade de Deus. Seria presunçoso e temerário se um governante, antes de agir, ficasse perquirindo sobre qual seria a vontade de Deus no tratamento de um determinado assunto. 

A estratégia de Maquiavel também pode ser resumida na adoção da proporcionalidade, entendida esta na ideia de que o homem deve fazer o que é exigido de acordo com a necessidade, mas não à sua mercê em todos os aspectos. (página 113)

RESUMO DAS DIFERENÇAS DAS ESTRATÉGIAS DE SANTO AGOSTINHO E MAQUIAVEL:

SANTO AGOSTINHO buscou estratégias para se defender do caos na Terra e das labaredas do inferno

MAQUIAVEL buscou estratégias para se esquivar do governantes e Estados incompetentes

SANTO AGOSTINHO buscou razão num único Deus

MAQUIAVEL elaborou sua estratégia ignorando Deus

SANTO AGOSTINHO criou uma cidade imaginária num livro

MAQUIAVEL preparou um guia para os príncipes de como governar seus Estados


ANOTAÇÕES EXTRAÍDAS DA LEITURA DO LIVRO "AS GRANDES ESTRATÉGIAS, DE SUN TZU A FRANKLIN ROOSEVELT, COMO OS GRANDES LÍDERES MUDARAM O MUNDO", DE JOHN LEWIS GADDIS, EDITORA CRÍTICA.



segunda-feira, 10 de maio de 2021

Como que a Guerra entre a Itália e a Abissínia ajudou Hitler e enterrou a Liga das Nações



INVASÃO ITALIANA À ABISSÍNIA:

Em 3 de outubro de 1935, a Itália, sob a condução de Benito Mussolini, invadiu a Abissínia, atual Etiópia. A Abissínia era um país independente, situado na África Oriental, governado pelo Imperador Hailé Selassié. 

LIGA DAS NAÇÕES:

Organismo criado após o fim da Primeira Guerra Mundial. Tinha o objetivo de reunir as nações do mundo para que elas pudessem resolver pacificamente seus conflitos. 

"Das cinzas da Primeira Guerra Mundial, contudo, emergiu um novo conjunto de princípios internacionais, cristalizado pela Liga das Nações. A época do imperialismo descarado e da diplomacia na ponta da faca já deveria ter acabado, e a era do direito internacional, tido início." (página 93)

O artigo 16 do instrumento que criou a Liga das Nações dizia que um ataque a qualquer membro constituía um ataque a toda a Liga. 

Itália, Grã-Bretanha, Itália e Abissínia faziam parte da Liga das Nações.

MEDO DE JOGAR A ITÁLIA NO COLO DE HITLER:

Com a invasão italiana na Abissínia, surgiu o dilema: 

França e Grã-Bretanha deveriam intervir para obstar a agressão italiana na África Oriental? 

Pela letra fria da lei, que tinha criado a Liga das Nações, o ataque a qualquer membro constituía um ataque a todos os membros da Liga das Nações. A maioria dos países membros da Liga não tinham condições de acudir a Abissínia, mas França e Grã-Bretanha tinham os meios para fazê-lo. Mas não fizeram nada de relevante, a não ser algumas sanções econômicas, que não afetavam o produto mais necessário para o esforço de guerra italiano, o Petróleo. 

A conduta de ingleses e franceses pode ser entendida pelo medo de, ao ajudarem militarmente a Abissínia, ou se pressionassem demais a Itália, impondo-lhe sanções que lhe obstassem o acesso ao Petróleo, acarretariam um acordo dela com a Alemanha de Hitler.  

Além disso, havia vozes importantes na Grã-Bretanha que eram contrárias à guerra contra a Itália, por causa da Abíssinia, um país que, segundo um político inglês, era "um país bárbaro, que ainda praticava o comércio de escravos." (página 96)

O rei inglês, Jorge V, disse para Lloyd George, ex-Primeiro-Ministro inglês durante a Primeira Guerra Mundial, "Não vou entrar em outra guerra, Não vou, gritava um rei George V claramente transtornado para Lloyd George." (página 96)

O parlamentar conservador Henry Chips Channon, "que indagava por que deveria o Reino Unido lançar-se à guerra pela Abissínia, 'quando grande parte dos recantos mais remotos do nosso Império (Império Britânico) foi ganha por meio da conquista." (página 96)

Não obstante a Marinha da Grã-Bretanha ser superior numa comparação com a da Itália, havia o receio de que o Japão se aproveitasse de um conflito entre Grã-Bretanha e Itália para iniciar um ataque no Extremo Oriente. 

SE A ABISSÍNIA NÃO FOSSE SOCORRIDA, A LIGA DAS NAÇÕES ESTARIA DESTRUÍDA:

Se a Abissínia não fosse socorrida, a autoridade da Liga das Nações iria perecer. Seria o fim de fato dessa instituição criada para fazer valer o Direito Internacional sobre o uso da força.

"...o Reino Unido precisa fazer valer o Pacto da Liga e apoiar sanções contra a Itália. Se não o fizesse, a autoridade da Liga, já abalada pela invasão japonesa da Manchúria, implodiria, e o mundo perderia um instrumento de contenção de agressores, em particular da Alemanha. Era essa a visão de Churchill, apesar de também enxergar com bastante simpatia a noção de que a ação firma contra a Itália só faria destruir a Frente de Stresa e jogar Mussolini nos braços de Hitler." (página 96)

ACORDO PARA ACABAR COM A GUERRA. A AGRESSÃO IMPERIALISTA DE MUSSOLINI FOI PREMIADA:

Grã-Bretanha, França e Itália acertaram-se então para por um fim à guerra. O acordo foi tão vergonhoso, que o Secretário das Relações Exteriores da Grã-Bretanha, Hoare, foi obrigado a renunciar. O Acordo estabelecia que a Abissínia teria que ceder 2/3 de seu território para a Itália, recebendo como compensação uma fina faixa territorial na Eritreia. 

Em 5 de maio de 1936, tropas italianas entraram em Adis Adeba. Quatro dias depois, Mussolini decretou a anexação da Abissínia e a criação do Império Fascista. Hailé Selassié, Imperador da Abissínia, fugiu para a Grã-Bretanha. 

Hailé Selassié ainda discursou na Suíça, onde pediu que a Liga das Nações impusesse sanções à Itália:

"Trata-se da confiança depositada por cada Estado nos tratados internacionais. Trata-se do valor das promessas feitas às pequenas nações de que lhe serão respeitadas e garantidas a integridade e a independência. Trata-se do princípio da igualdade dos Estados, por um lado, ou então a obrigação depositada sobre os pequenos de aceitarem elos de vassalagem. Numa palavra, é a moralidade internacional que está em jogo." (Hailé Selassié, junho de 1936 - página 101)

O esperneio de Hailé Selassié de nada serviu. A Liga das Nações decidiu suspender as sanções contra a Itália.

CONSEQUÊNCIAS DA GUERRA ENTRE ITÁLIA E ABISSÍNIA E A DESMORALIZAÇÃO DA LIGA DAS NAÇÕES:

"Mais até do que Mussolini, o vitorioso da guerra entre Itália e Abissínia foi Hitler." (página 101)

Primeiro de tudo, Hitler viu o fim da Frente de Strese, uma união entre Grã-Bretanha, França e Itália, estabelecida em abril de 1935, num encontro na cidade de Strese, na Itália, que tinha como objetivo conter a Alemanha. 

Hitler ainda viu ingleses e franceses comportarem-se de forma ignominiosa, abandonada a Abissínia à própria sorte. 

A autoridade da Liga das Nações, que poderia ser usada para conter os abusos da Alemanha Nazista, não existia mais. A Liga estava desmoralizada. Se ela não podia proteger a Manchúria, a Abissínia, não poderia proteger ninguém mais.

"Mussolini mostrara tudo o que se podia obter por meio da agressividade pura e simples. e as potências ocidentais haviam se mostrado incapazes de contê-lo. Hitler registrou a mensagem e acelerou seus planos." (página 102)

E Hitler acelerou mesmo. Acelerou na Renânia, acabando com a desmilitarização da região que tinha sido determinada pelo Tratado de Versalhes. E não parou por aí: vieram a anexação da Áustria (Auschluss), da Boêmia, da Morávia (atual República Tcheca)...


ANOTAÇÕES EXTRAÍDAS DA LEITURA DO LIVRO "NEGOCIANDO COM HITLER, A DESASTROSA DIPLOMACIA QUE LEVOU À GUERRA", DE TIM BOUVERIE, EDITORA CRÍTICA.



Por que a Grã-Bretanha não deteve Hitler tão logo ele assumiu o Poder?



PERÍODO ENTREGUERRAS - PACIFISMO:

O Período compreendido entre o final da Primeira Guerra Mundial e o início da Segunda Guerra Mundial foi caracterizado, na Grã-Bretanha, por um espírito pacifista. 

Com efeito, entre 1933 e 1934, havia na Grã-Bretanha um espírito pacifista maior que em qualquer outra época desde o fim da Primeira Guerra, em 1918. Filmes e livros sobre os horrores da Primeira Guerra Mundial foram lançados entre os anos de 1920 e 1930, ajudando a criar na opinião pública um sentimento de repulsa sobre qualquer iniciativa que levasse a uma nova guerra. Um dos livros de maior sucesso foi a obra de Erich Maria Remarque, "Nada de novo no front." 

A QUIMERA DO DESARMAMENTO E A GUERRA AÉREA:

Havia o desejo pelo desarmamento, pois foi a armamento desenfreado que levou à Primeira Guerra Mundial. Houve uma Conferência de Desarmamento, na Suíça. 

A opinião pública, na Grã-Bretanha, era a favor do desarmamento. 

Havia ainda o medo das novas armas, notadamente o uso de aviões para bombardear cidades. O surgimento dos bombardeios aéreos tinha esfarelado a noção de fronteiras. Segundo um político britânico, então no cargo de Primeiro Ministro, Baldwin, as fronteiras da Grã-Bretanha não estavam mais estabelecidas pelos "...penhascos de giz de Dover, mas pelo Rio Reno." (página 52)

Havia a noção segundo a qual não havia poder na terra capaz de deter um bombardeamento aéreo.

A guerra aérea na década de 30 era encarada da mesma forma como nós encaramos hoje um conflito nuclear. (página 55)

"A versão cinematográfica de "Daqui a cem anos", de H.G. Wells, lançada em 1936, imaginava a destruição completa de Londres após um ataque aéreo ..." (página 55)

Cidades seriam totalmente destruídas, daí a necessidade de lutar por um consenso em favor do desarmamento.

"....grandes armamentos levam inevitavelmente à guerra." (página 42)

O temos de que a destruição viesse de cima, por meio de ataques aéreos, obrigou a Grã-Bretanha a gastar mais dinheiro com sua Força Aérea do que com seu exército e marinha. E isso se fez necessário, diante do fracasso da Conferência de Desarmamento e diante do rearmamento alemão. 

O investimento da Grã-Bretanha em sua Força Aérea atendia ao conceito da Dissuasão Aérea. 

Dissuasão Aérea:

A ideia da Dissuasão Aérea nasceu da visão apocalíptica de uma guerra aérea. A única forma então de se defender de um bombardeio inimigo era o ataque, "...o que significa termos que matar mais mulheres e crianças com mais celeridade do que o inimigo se quisermos salvar nossas peles." (página 49)

A ESTRATÉGIA BRITÂNICA NO ENTREGUERRAS:

A estratégia britânica quando da ascensão do nazismo na Alemanha visava a "Limitação de Vulnerabilidades." Tinha por objetivo reforçar a Força Aérea para bombardear os Alemães em sua casa, reduzindo assim a sua força de combate. O britânicos queriam evitar o envio de grandes forças terrestres para o continente, pois ainda estavam vivas na memória as tragédias dos combates da Primeira Guerra Mundial. As lembranças do Somme e de Passchandaele, onde milhares de soldados britânicos morreram em combate, ainda estavam vivas. Na visão dos britânicos, o exército francês teria uma força terrestre capaz de obstar uma avanço alemão. Os franceses ainda contavam defesas terrestres formidáveis, como a Linha Maginot. 

Além do uso da Força Aérea, a Grã-Bretanha também se valeria do uso de seus navios para estabelecer um bloqueio naval.

FALTAVA DINHEIRO PARA A GRÃ-BRETANHA FORTALECER SUAS FORÇAS ARMADAS:

Vigorava na Grã-Bretanha, desde o ano de 1919, a "Regra dos Dez Anos", que presumia que o Império Britânico não se engajaria numa grande guerra durante os dez anos seguintes, de forma que o orçamento militar poderia ser diminuído nesse período.

Essa regra foi renovada em 1929. Mas essa política teve que ser abandonada em razão da invasão do Japão à província chinesa da Manchuria, no ano de 1931. Mas mesmo assim, os efeitos da Grande Depressão, somado ao espírito de desarmamento vigente então na Grã-Bretanha, atuaram para manter dilapidado o sistema de defesa britânico entre 1932 e 1935. (página 44)

CHURCHILL, A VOZ PELA GUERRA CONTRA HITLER:

Em novembro de 1934, Winston Churchill discursou no Parlamento Inglês para alertar os ingleses sobre o rearmamento alemão. Mas Churchill, naquela ocasião, não encontrou apoio. A resposta do governo inglês, por meio de seu Primeiro Ministro, Baldwin, foi no sentido de desmerecer o discurso de Churchill, dizendo:

"No que se referia à comparação, a Força Aérea alemã correspondia a apenas 50% da RAF (Força Aérea inglesa)." (página 56)

No geral, naquele final de ano de 1934, a política da Grã-Bretanha era a de tentar apaziguar Hitler, pois a alternativa a isto seria uma corrida armamentista que provavelmente levaria a outra guerra. E o governo inglês, naquela altura, não estava disposto a pagar esse preço. Nem a opinião pública aceitaria o rearmamento, que também era atacado pelo Partido Trabalhista inglês, sob o comando de Clement Attlee. O rearmamento era visto como uma das causas da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

OS APAZIGUADORES:

A tentativa de apaziguar Hitler, de tentar achar uma forma de negociar com ele, nasceu de um sentimento de culpa que acometia membros da elite britânica e do governo inglês. Esse sentimento de culpa foi causado pela constatação que o Tratado de Versalhes tinha sido duro demais com a Alemanha, "...fornecendo todas as mágoas que o coração de um nacionalista alemão poderia desejar." (página 64)

A noção de que a culpa pelo nazismo pertencia aos aliados (França e Grã-Bretanha - Tratado de Versalhes) era fundamental à mentalidade a partir da qual se desenvolveu o apaziguamento.

"Se o nacional-socialismo (nazismo) fora 'criado' por Inglaterra e França, seria apenas lógico que coubesse aos dois países apaziguá-lo com a reparação das mágoas, por meio das quais havia prosperado." (página 64)

Os defensores do apaziguamento acreditavam que poderiam alterar o Regime Nazista, até reformá-lo, desde que os aliados se mostrassem dispostos a fazer justiça à Alemanha, leia-se, reformando o Tratado de Versalhes. 

David Lloyd George, ex-Primeiro Ministro inglês durante a Primeira Guerra, alertou que o Tratado de Versalhes tinha transformado a Alemanha num pária. Havia chegado a hora de corrigir os erros do passado, isto é, os duros termos do Tratado de Versalhes teriam que ser revistos, de forma a trazer a Alemanha de volta para a comunidade das nações. 

O MEDO DO COMUNISMO:

A elite inglesa via o nazismo como algo menos ruim do que o comunismo. Era o mal menor. Se tivessem que escolher entre Hitler e Stalin, escolheriam o primeiro. Nesse sentido, o diretor do Banco da Inglaterra, Montagu Norman, "...descrevia Hitler e o Ministro da Economia da Alemanha, Hjalmar Schacht, como baluartes da civilização engajados em uma guerra em nome do nosso modelo de sociedade." (página 69)

Essas pessoas viam em Hitler uma barreira que iria conter a expansão do comunismo. A lembrança da revolução bolchevique ainda estava bem viva na mente da elite inglesa. Não dava para esquecer o assassinato do Czar Nicolau II e de sua família. Não dava para esquecer que o comunismo pregava o fim da propriedade privada. 

ACORDO NAVAL ANGLO-GERMÂNICO DE 18 DE JUNHO DE 1935:

Em março de 1935, John Simon, Secretário das Relações Exteriores da Grã-Bretanha, e Anthony Eden, Lorde do Selo Privado inglês, tiveram um encontro com Adolf Hitler, em Berlim.

Seria mais uma tentativa para amansar Hitler. Mas Hitler deixou uma péssima impressão. Hitler mantinha-se irredutível em sua ambição de recuperar as colônias que a Alemanha tinha perdido depois do fim da Primeira Guerra. Hitler já havia violado o Tratado de Versalhes, ao criar uma Força Aérea, a Luftwaffe. Hitler ainda pretendia expandir suas forças terrestres para 300 mil homens, outra violação do Tratado de Versalhes. Hitler ainda dava sinais de que pretendia acabar com a desmilitarização da Renânia. 

Diante disso, Sir John Simon reconheceu para o seu governo que, mais cedo ou mais tarde, as pretensões alemãs teriam que ser obstadas com o uso da força. (página 87)

Os ingleses finalmente tinham acordado para o perigo representado pelo regime nazista.

Todavia, os alemães voltaram a pôr os ingleses para dormir, por meio de uma jogada de Hitler. A jogada de Hitler consistia num acordo naval com a Grã-Bretanha. A proposta alemã atendia a um desejo antigo da política de defesa da Grã-Bretanha. Ela estabelecia a frota naval alemã com 35% do tamanho da Marinha inglesa. 

E essa proposta veio num momento em que a Marinha inglesa via-se ameaçada pela expansão japonesa. O Japão tinham sinalizado, em dezembro de 1934, que não iriam renovar o Tratado Naval de Washington, que concedeu tanto à Grã-Bretanha quando aos Estados Unidos da América superioridade naval sobre os japoneses da ordem de 5 para 3. 

"Aquele era um presságio de uma disputa naval com o Japão, e o Reino Unido já havia concluído que não tinha como arcar com ela. Deparar-se com o desafio dos alemães ao mesmo tempo era impensável." (página 88)

E a Grã-Bretanha ainda tinha a lembrança da tentativa alemã de superá-la na produção de navios de guerra, às vésperas da eclosão da Primeira Guerra Mundial. 

A jogada de Hitler acabou surtindo o efeito esperado. O Almirantado inglês, responsável pela Força Naval da Grã-Bretanha, "...alertara o Gabinete (o governo inglês) para agarrar com as duas mãos a oferta de Hitler." (página 88) 

Em 18 de junho de 1935, Alemanha e Grã-Bretanha então assinando o Acordo Naval Anglo-Germânico.

ITÁLIA E FRANÇA SENTEM-SE TRAÍDOS PELA GRÃ-BRETANHA:

Itália a França se sentiram traídos pelo Acordo Naval Anglo-Germânico. Isso porque, em abril de 1935, na cidade italiana de Stresa, os primeiros ministros da Inglaterra e da França se encontraram com o Duce Mussolini. Nesse encontro ficou acertado uma frente comum para deter o rearmamento alemão e a violação alemã dos termos do Tratado de Versalhes. Acertaram ainda que iriam se opor através de todos os meios práticos (sanções, guerra) a qualquer desrespeito unilateral que possa por em perigo a paz na Europa.

Mas com o posterior acordo naval entre Inglaterra e Alemanha, os termos acordados em Stresa não tinham mais eficácia, para jubilo de Hitler. Franceses e italianos ficaram furiosos com o comportamento da Inglaterra. 

"A segurança francesa havia sido sacrificada no altar dos interesses britânicos." (página 89)

"Em Roma, Mussolini, igualmente irritado, chegou a duas conclusões importantes: o Reino Unido não era amigo da segurança coletiva e vacilava quando confrontado por meio da força. Estava armado o palco para a aventura do próprio Duce na África oriental." (página 89)

Com efeito, em 3 de outubro de 1935, encorajado demonstração de fraqueza da Grã-Bretanha, a Itália invadiu a Abissínia, atual Etiópia. 


ANOTAÇÕES EXTRAÍDAS DA LEITURA DO LIVRO "NEGOCIANDO COM HITLER, A DESASTROSA DIPLOMACIA QUE LEVOU À GUERRA", DE TIM BOUVERIE, EDITORA CRÍTICA.



domingo, 2 de maio de 2021

1939/1940 Dilema da Grã-Bretanha Declarar ou não Guerra à URSS





DILEMA INGLÊS:

Diante do Pacto Ribbentrop-Molotov (Nazi-Soviético) de 23 de agosto de 1939 e da invasão russa à Finlândia (final de novembro de 1939 até março de 1940), a Grã-Bretanha se viu diante de um dilema: declarar ou não guerra à URSS.

Naquele momento, a Grã-Bretanha se via em meio a sentimentos que iam do medo dos motivos ocultos que tinham animado a URSS a fazer um acordo com a Alemanha nazista ao receio de jogar a Stalin de vez no colo de Hitler.

ALEMANHA NAZISTA E URSS, DUAS DITADURAS SEDENTAS POR CONQUISTAS, QUE NÃO RESPEITAVAM A SOBERANIA DOS PAÍSES QUE LHE FAZIAM FRONTEIRA:

1/09/1939: A Alemanha invade a porção oeste da Polônia

17/09/1939: A URSS invade a parte leste da Polônia

Novembro de 1939: A URSS invade a Finlândia, naquilo que ficaria conhecido como a Guerra de Inverno

O QUE DEVERIA FAZER A GRÃ-BRETANHA DIANTE DAS INVASÕES DA URSS À POLÔNIA E À FINLÂNDIA?

Diante da invasão russa à Polônia e à Finlândia, deveria a Grã-Bretanha declarar guerra à URSS, como fizera em relação à Alemanha, quando esta invadiu a Polônia?

OS INGLESES TINHAM SE PRECAVIDO QUANTO A UMA INVASÃO RUSSA À POLÔNIA:

Com o Pacto Nazi-Soviético os ingleses já conjecturavam uma invasão russa à Polônia. Com isso em mente, os britânicos, quando celebraram o Tratado de Mútua Assistência com a Polônia, em agosto de 1939, ficou estabelecido que a Grã-Bretanha socorreria a Polônia caso esta fosse atacada por uma Potência Estrangeira. A pegadinha inglesa foi consignada por meio de um protocolo secreto, que definia essa Potência Estrangeira como sendo unicamente a Alemanha Nazista. Assim, a Polônia só seria socorrida pela Grã-Bretanha no caso de um ataque alemão, o que de fato aconteceu, quando os ingleses declararam guerra à Alemanha em 3 de setembro de 1939. Com relação a uma agressão da URSS à Polônia, a Grã-Bretanha não tinha nenhuma obrigação a cumprir. Neste caso haveria somente uma mútua consulta para se definir qual resposta seria dada. (página 172) 

Como a história mostrou, nenhuma resposta foi dada e a URSS pôde tranquilamente anexar o leste da Polônia ao seu território. 

A GRÃ-BRETANHA NÃO ESTAVA DISPOSTA A ENTRAR NUMA GUERRA CONTRA A URSS:

Os ingleses ficaram chocados com o Pacto Nazi-Soviético, mas tinham a esperança que ele fosse de curto prazo. A Grã-Bretanha via no Pacto Nazi-Soviético um arranjo cínico, de curto prazo, entre inimigos ideologicamente opostos. Seria um arranjo antinatural. de forma que seria temporário.

A Grã-Bretanha via a necessidade de manter um canal de diálogo aberto com a URSS. A Grã-Bretanha não estava "disposta a desfazer um vínculo potencialmente vital com a União Soviética, transformando-a de forma prematura em inimiga." (página 168)

MANEIRA ENCONTRADA PELA GRÃ-BRETANHA PARA MANTER ABERTA UM CANAL DE DIÁLOGO COM A URSS:

A Grã-Bretanha viu no comércio uma forma de manter um canal de diálogo aberto com a URSS.

"Na primeira semana de outubro (1939), firmou-se um acordo para trocar madeira soviética no valor de um milhão de libras esterlinas por borracha e estanho." (página 172)

Até Churchill procurou minimizar o fato da URSS ter violado da soberania da Polônia. Churchill disse que atitude da URSS se justificava pelo fato dela ter agido para se proteger diante da expansão nazista pelo oeste da Polônia. (página 173)

"Longe de ser criticas, Churchill foi conciliatório, tão tolerante com seu potencial aliado soviético como contundente com seu inimigo alemão. " (página 173)

A Rússia, concluiu então Churchill, era "uma charada, envolta em mistério, dentro de um enigma." (página 173)

ALTERNATIVA À DECLARAÇÃO DE UMA GUERRA CONTRA A URSS:

A Grã-Bretanha não iria declarar guerra à URSS, mas nem por isso ficaria totalmente passiva. A Grã-Bretanha passou então a trabalhar para estorvar o comércio internacional soviético. Essa política tinha dois objetivos: 

A) Pressionar a URSS, mostrando que seu acordo com a Alemanha iria lhe trazer problemas

B) impedir que matérias-primas vitais chegassem à Alemanha via URSS. 

"Foi assim que autoridades britânicas começaram a interceptar e deter navios soviéticos, como o Selenga, parado em Hong Kong, em janeiro de 1940 com um carregamento de tungstênio, antimônio e estanho a caminho de Vladivostok." (página 174)

INVASÃO DA URSS À FINLÂNDIA (GUERRA DE INVERNO: NOVEMBRO DE 1939 A MARÇO DE 1940)

Com a invasão da URSS à Finlândia, voltou-se a especular sobre os méritos e deméritos de uma declaração de guerra da Grã-Bretanha à URSS. 

A Grã-Bretanha estava realmente diante de um dilema que a atormentava: declarar ou não guerra à URSS. O caso da Polônia tinha sido resolvido. Mas agora os ingleses de deparavam com uma nova agressão soviética, contra um país pequeno, a Finlândia. 

E não se tratava apenas da URSS. Buscava-se também, por meio de uma ataque à URSS, atingir a sua aliada, a Alemanha Nazista.

Cogitou-se de um ataque a Baku (Operação Pike), localizada no Cáucaso, que era responsável por 75% do petróleo produzido pela URSS. França e Grã-Bretanha estavam de acordo. Um avião britânico chegou a sobrevoar o Cáucaso russo para mapear a área que deveria ser bombardeada. 

"No fim de 1939, a ideia de bombardear Baku já circulava pelos governos britânicos e francês havia algum tempo, mas, com a vitória soviética contra os finlandeses na Guerra de Inverno em março de 1940, ganhou novo impulso. No começo do ano, um relatório do Estado-Maior da Força Aérea Britânica sugeriu que bastava um punhado de bombardeiros para mutilar a indústria petrolífera soviética, atingindo, dessa forma, a produção militar de Hitler. No início de 1940, o Gabinete de Guerra aprovou devidamente a construção dos necessários campos de aviação na Turquia e, dentro de um mês, um Lockheed Electra modificado, pertencente à Unidade de Processamento Fotográfico da RAF em Heston, fez duas incursões, a partir de Habbaniya no Iraque, para realizar voos de reconhecimento fotográfico de alvos." (página 176)

No fim, tudo ficou no plano da cogitação. Com a invasão alemã à França em maio de 1940, o plano foi abandonado. 

NO FIM OS INGLESES SE DERAM CONTA DE QUE NÃO IRIAM AUFERIR NENHUMA VANTAGEM DECLARANDO GUERRA À URSS:

Definitivamente não seria vantajoso para a Grã-Bretanha declarar uma guerra à URSS. No caso da declaração de uma guerra, a Grã-Bretanha poderia reforçar ainda mais a aliança entre a URSS e a Alemanha. 

"Em geral, dava-se ao proposto ataque à União Soviética a justificativa mais ampla de interromper as relações de Stalin com Hitler, mas a ideia de que esse ataque pudesse ter o efeito contrário, e na verdade viesse a fortalecer a conexão Berlim-Moscou, parece não ter sido levantada." (página 179)

Ou poderia ocorrer um cenário mais tenebroso: 

Um ataque inglês à União Soviética (Operação Pike, o bombardeamento do campo petrolífero em Baku) acabaria por enfraquecê-la, abrindo caminho então para uma invasão alemã à URSS. O leste então estaria aberto para o avanço alemão. 👉👉 "Nesse caso, o mais provável beneficiário teria sido, não as Potências Ocidentais, mais Hitler, que ficaria livre para marchar para o leste sem encontrar resistência, e assumir ele próprio o controle daqueles mesmos campos petrolíferos do Cáucaso." (página 179)

Os ingleses fizeram bem em esperar desenrolar dos acontecimentos. Em 22 de junho de 1941, com a invasão alemã à URSS (Operação Barborossa), os soviéticos foram em busca de uma aliança com a Grã-Bretanha. 

ANOTAÇÕES EXTRAÍDAS DA LEITURA DO LIVRO "O PACTO DO DIABO, A ALIANÇA DE HITLER COM STALIN, 1939-1941, DE ROGER MOORHOUSE, EDITORA OBJETIVA.