quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Capitu Traiu Bentinho Paulo Francis Dom Casmurro Machado de Assis

"Bentinho era casmurro não por ser corno, seria irritadiço por isso, mas sim porque era ruim de cama" (Paulo Francis)

"Fico sabendo que Otto Lara Resende meteu a mão numa casa de marimbondos de leitores ao escrever que Capitu chifra Bentinho, em 'Dom Casmurro'. Acadêmicos em penca, naturalmente, arguíram por um talvez. Waaal, acho que qualquer homem com experiência social sabe quando a mulher o trai. Basta olhá-la. Quando 'Capitu e eu, involuntariamente, olhamos para a fotografia de Escobar, e depois um para o outro. Desta vez a confusão dela fez-se confissão pura.' Ou 'Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã.'

Ezequiel é a cara de Escobar. Não adianta vir com aquele argumento 'mas o que Marx queria realmente dizer'. O que Marx quis dizer está muito claro em O Capital, não interessa o que abandonou nos Manuscritos de Paris ou Grundrisse. Por que Machado iria fazer seu narrador depor em falso? Que história é essa? Literatura não é charada.

Subtexto se há só confirma os chifres. A famosa passagem em que Bentinho fala dos braços de Capitu, que tanto admira, logo chama a atenção do homem experimentado porque é a admiração de um fã, e não de quem tenha domado o potro, do homem que tenha conquistado a mulher sexualmente. Capitu em momento algum corresponde. A maneira como se compõe quando Bentinho a acusa diretamente, para mim é prova de culpa, de uma personalidade calculista. Fica lívida, segundo Bentinho, mas não emocionada, arrasada, com a acusação falsa. Bentinho é casmurro não por ser corno, seria irritadiço por isso, mas sim porque é ruim de cama. Escobar era bom. Inveja o amigo morto. Capitu continua fascinante.

A única alternativa plausível é a freudiana, da paranóia. À primeira insinuação de Iago de que Desdêmona é infiel, Otelo responde: 'Oh misery!' É rápido demais. É o que importa. Não questiona Iago. Críticos de alto porte notam que a argumentação de Iago vai muito além do lenço famoso. Desdêmona enganou o pai, Brabantio, para casar com Otelo. E fica bem claro que Brabantio morreu em consequência disso, e vemos Desdêmona alegre e fagueira, depois da morte do pai... Iago diz a Otelo que quando Desdêmona fingia ter medo dos arroubos do negrão era quando mais os desejava sexualmente. A conversa final dela com Emílio é repleta de innuendos sexuais. Auden escreveu que se Desdêmona não fosse assassinada por Otelo em anos tomaria um amante. (...).

PAULO FRANCIS, DIÁRIO DA CORTE, JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO, QUINTA-FEIRA, 22 DE FEVEREIRO DE 1992, PÁGINA 10, CADERNO 2

Capitu traiu Bentinho Machado de Assis Dom Casmurro Otto Lara Resende e Paulo Francis Parte 2

NÃO TRAIAM O MACHADO

"Mais uma vez Machado de Assis no vestibular. Dois capítulos de 'Dom Casmurro", na prova de português aí em São Paulo. Ao menos assim Machado vai sendo conhecido, ou imposto, entre a meninada. Se entendi bem as questões propostas e as resoluções que saíram no 'Fovest 92', a prova não apenas opta pela versão do ciúme, como nela insiste de maneira tão enfática que nem admite sombra de controvérsia. 

A hipótese aí encampada, de que Capitu não traiu Bentinho, um Bentinho paranoicamente ciumento qual Otelo, está fundamentada em 'O enigma de Capitu.' Apareceu de fato o ensaio de interpretação de Eugênio Gomes, publicado em 1967. Muitas vozes discordaram da hipótese gratuita e absurda, que terá sido levantada como simples quebra-cabeça, um joguinho enigmático para descansar o espírito numa hora de folga e tédio.

Quem fica tiririca, e com toda razão, com essa história mal contada, e tão mal contada que desmente o próprio Machado, é o Dalton Trevisan, machadiano de mão cheia e olho agudíssimo. Pois nessa prova do vestibular, o drama do Bentinha se apresenta como 'centrado no ciúme doentio e na suposta traição de sua esposa'. Suposta? De onde os senhores professores tiraram esse despropósito e o passam aos imberbes e indefesos vestibulandos?

'Dom Casmurro' saiu em 1900. Machado morreu em 1908. Nenhum crítico nesses 8 anos jamais ousou negar o adultério de Capitu. Leiam a carta do Graça Aranha, amigo pessoal do Machado: 'Casada, teve por amante o maior amigo do marido.' Voltem ao artigo do Medeiros e Albuquerque. Dar o Bentinho como o 'nosso Otelo' é pura fantasia. Bestialógico mesmo. Um disparate indigno de pisar no vestíbulo da universidade. Refinadíssimo escritor, mestre do subentendido, virtuose da meia palavra, do 'understatement', Machado jamais desabaria numa grosseira cena de alcova, como num flagrante policial de adultério.

Mas, se querem, o flagrante está no capítulo 113, 'Embargos de Terceiros'. No anterior capítulo 106, 'Dez libras esterlinas', Capitu revela os escondidos encontros com Escobar. Bentinho era estéril - precisa prova maior? De onde então essa ideia pateta de um Bentinho ingênuo e ciumento? Não é uma simples suspeita que está no capítulo 99, 'O filho é a cara do pai.' D. Glória, avó amantíssima, rejeita o neto putativo. Está na cara que nenhuma razão justifica virar o romance e o Machado pelo avesso. Ensinar errado é pecado capital. Ouçam o Dalton. Quem insistir na tese do 'enigma' não lhe dirija a palavra. E de lambugem não me cumprimente. Machado merece respeito."

(OTTO LARA RESENDE, FOLHA DE SÃO PAULO, 8 DE JANEIRO DE 1992, QUARTA-FEIRA, PÁGINA 2, CADERNO OPINIÃO)

Capitu traiu Bentinho na Obra Dom Casmurro de Machado de Assis? Otto Lara Resende e Paulo Francis Parte 1

INOCENTE OU CULPADA 

"Eu sei que tu sabes o que eu nem sei se tu sabes. Isto é a epígrafe de uma novela que começa assim: 'Ultimamente ando de novo intrigado com o enigma de Capitu. Teria ela traído mesmo o marido, ou tudo não passou de inspiração dele, como narrador? Reli mais uma vez o romance e não cheguei a nenhuma conclusão. Um mistério que o autor deixou para a posteridade.' É o primeiro parágrafo de 'O bom ladrão', de Fernando Sabino.

Se não se trata de simples truque do narrador, por aí se pode concluir que o Fernando talvez esteja entre os que entendem que existe mesmo o tal enigma de Capitu. Nem por isto o Dalton Trevisan e eu vamos deixá-lo de cumprimentá-lo. Antes, se diverge de nós, é mais um motivo para mantermos o diálogo. Trocar uma gravata vermelha por uma gravata vermelha não tem a menor graça. Até o escambo pede mercadorias distintas. 

Eugênio Gomes era um machadiano de verdade. Em 1939, ano do centenário do Machado, publicou um livro pioneiro sobre as influências inglesas em Machado de Assis. 'O enigma de Capitu', que pouca gente leu, apareceu em 1967. Capitu era inocente ou culpada? A pergunta está na orelha do livro. Em 1958, o criminalista Aloysio de Carvalho Filho tentou o processo de Capitu. Conheci-o senador e guardo boa lembrança dos nossos bate-papos sobre esse 'julgamento'.

Dizem que da discussão nasce a luz. Moço, disse que da discussão nascem os perdigotos. Depois passei a ver polêmica no quadro do humorismo. Sem 'fairplay', é uma chatice. Desaforo não tem graça. Carlos de Laet, Camilo Castelo Branco, Oswald de Andrade, Nelson Rodrigues - todos os bons polemistas são homoristas. Até o Antônio Torres da lusofobia tem piada. O José Guilherme Merquior, que adorava uma polêmica e que póstumo continua polêmico, gostou da minha tese. Um dia conto esta história, de que faz parte o Hélio Pellegrino. 

Data de 1933 o ensaio de Mario Casasanta sobre 'Machado de Assis e o tédio à controvérsia". Machado nunca respondeu ao Sílvio Romero ou a quem quer que seja. Tinha horror aos chatos. Nem precisa lê-lo para saber disto. Basta ler o Eugênio Gomes no 'Enigma'. A obra machadiana é toda repassada de finura, de espírito. De 'wit'. O Daltan Trevisan e eu recusamos o cinto de castidade que impuseram à Capitu. Só ela tem de ser fiel nesta época de permissividade. Dá pra discutir com quem leu o Machado. Ou discretear, mas com estilo e graça. Machadianamente."

(OTTO LARA RESENDE, FOLHA DE SÃO PAULO, 13 DE JANEIRO DE 1992, SEGUNDA-FEIRA, PÁGINA 2, CADERNO OPINIÃO.)