sexta-feira, 5 de junho de 2020

Corte Merovíngia Regicídio Konigsnahe Brunilda Maior Domus



TENTATIVA DE REGICÍDIO NUMA CORTE MEROVÍNGIA NO SÉCULO VI:

Não era seguro ser rei num reino franco. No ano de 589 (século VI), na Gália, Childeberto II, rei franco, conseguiu desbaratar uma conspiração que pretendia assassiná-lo. A conspiração foi tramada por poderosos aristocratas, que conviviam na corte com Childeberto II. Desbaratada a conspiração, os aristocratas envolvidos no golpe foram perseguidos, mortos e tiveram seus bens confiscados. Além de Childeberto, sua mãe, Brunilda, também era odiada pelos conspiradores. Brunilda era regente e participava da governação do reino até Childeberto atingir a maioridade. 
Desse episódio (narrado no livro com maiores detalhes), podem ser extraídas as seguintes conclusões sobre o reino Merovíngio:

➧ havia facções na corte merovíngia; a corte não era unida.
➧ rainhas-mães, como Brunilda, tinham poder político.
➧ os grandes aristocratas tinham dinheiro para um exército particular, capaz de conspirar pela derrubada de um rei.
➧ esses aristocratas tinham suas ambições voltadas para a corte régia, das quais eram súditos. conspiravam pois pretendiam substituir o rei por eles mesmos. 
➧ esses aristocratas eram ricos mas não a ponto de terem fortificações privadas, não tinham castelos
"...ao contrário do mundo dos castelos da fase central da Idade Média." (página 176)
➧ o santuário era respeitado, mas se o conspirador procurasse guarida, refúgio em alguma igreja, ele seria retirado dali à força e assassinado. foi exatamente o que aconteceu com os aristocratas que conspiraram contra Childerico II.

MUNDO POLÍTICO MEROVÍNGIO:

"...um mundo em que os reis enfrentavam, de forma sistemática, súditos excessivamente poderosos, que tinham tanto caráter quanto recursos."
(página 176)

A Dinastia Merovíngia governou os francos por 250 anos, até 751 (golpe carolíngio). A denominação "Merovíngia" foi extraída de um obscuro avô Meroveu, que pertencia à família de Clóvis.

"...sua hegemonia deveu-se a Clóvis (481-511). Clóvis, filho de Childerico I - um chefe guerreiro tardo-romano e rei franco assentado em Tournai - subjugou os reis francos rivais que tinham ocupado seções distintas da Gália Setentrional, assim como os chefes militares não francos que viviam no norte."
(página 177)

Clóvis logrou unificar 3/4 da Gália. Converteu-se ao catolicismo. O domínio franco expandia-se par ao reino da Burgúndia e para a Bavária (tribos bávaras, atual Alemanha - Estado da Bavária).  Os alamanos, antes de 550, no vale do alto Reno, já tinham sido dominados por Clóvis, assim como a Aquitânia visigótica, em 507.

"...uma hegemonia franca, porém mais frouxa, foi também reconhecida na Itália setentrional, na Germânia central, no leste da Turíngia, na Bretanha (a única parte da Gália que nunca foi conquistada inteiramente pelos francos), e talvez inclusive em Kent. O núcleo principal das terras francas esteve sempre no norte da Gália, e os principais centros régios estendiam-se de Paris a Orléans, passando por Reims e Metz, até Colônia: Não eram exatamente capitais, no sentido administrativo, mas lugares onde os reis podiam frequentemente ser encontrados..."
(página 177)

Enquanto o rei franco movia-se pelo norte, com sua corte e administradores, o sul da Gália (mais rico e mais romano - página 177) era governado por duques, condes e bispos. A leste do rio Reno, havia duques na Baviera e na Turíngia, com maior liberdade de ação. Era, no início, uma região mais simples, na qual faltava infraestrutura, como por exemplo estradas e cidades.
Os aristocratas no reino franco merovíngio procuravam ficar próximos do rei, esperando algum cargo ou presente. Tudo gerava em torno de dinheiro. Se você tinha acesso ao dinheiro, você teria apoio.
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"Em todos os relatos sobre golpes contra um rei ou sobre rebeliões de seus rivais, durante o século VII, consta a intenção de apoderar-se de um 'thesaurus (Tesouro): era a base essencial para obter o apoio da aristocracia. Carlos Martel ainda fez isso na guerra civil (715-719); nesse sentido, os parâmetros da política não mudaram em absoluto."
(página 186)

As relações de poder no interior de um reino merovíngio se davam basicamente entre o rei e seus magnatas aristocráticos, seculares e eclesiásticos. O Rei ou 'maior domus' relacionava-se com seus administradores da casa ( 'domestici'), pessoas que cuidavam dos documentos do reino (referendaru) e com as pessoas que cuidavam do cofre do reino (thesauraii). Essas pessoas (referendaru, thesauraii e domestici), pela proximidade do poder, eram uma espécie de intermediários (mediadores) entre o rei e quem desejava um favor dele. Esses intermediários eram uma espécie de Patronato romano. Se você vivesse na época do reino merovíngio e precisava de alguma coisa (ser favorecido numa disputa legal, receber uma doação de terra ou um outro favor), iria tentar se aproximar de um desses mediadores.
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Konigsnahe: Palavra alemã designadora de alguém que é próximo ao rei ('conviva regis' - ter o direito de comer com o rei). Essa pessoa, próxima ao rei, poderia interceder a seu favor. 

ORDENS RÉGIAS: COISAS COM AS QUAIS UM REI MEROVÍNGIO SE OCUPAVA:

✏ Nomeação de bispos e condes
✏ Prover alimentação aos mensageiros reais
✏ Cessões de terras
✏ Intimação de um criminoso
✏ Deposição de bispos
✏ Divisão de Propriedade Privada
✏ Restituir uma propriedade que fora confiscada
✏ Pedido para cancelar a realização de um Concílio Eclesiástico porque não foi convidado para ele

ASSEMBLEIAS ('PLACITA'):

Encontros do rei com a sua elite. Compareciam o séquito armado do rei, duques, condes e seus respectivos seguidores. Nessas assembleias tomavam-se decisões, como por exemplo ir à guerra.
Veja que ir à uma guerra era uma "coisa que não estava inteiramente sob controle dos reis.." (página 188)
As elites também usavam essas assembleias para chancelar a ascensão de alguém ao trono merovíngio.

"...em 673, Ebroíno não convocou uma assembleia de aristocratas para reconhecer a subida ao trono de Teodorico III, na Nêustria, e isso os (aristocratas) levou a concluir que ele (Teodorico III) pretendia governar sem consentimento e, por isso, reconheceram em seu lugar Childerico II, da Austrásia."
(página 189)

Nessas assembleias ainda eram decididas disputas legais, cujos vereditos eram cobertos pelo manto da legitimidade. 

"Essas reuniões representavam um elo entre os reis e o povo franco..."
(página 189)

OS ARISTOCRATAS DURANTE A DINASTIA MEROVÍNGIA:

Os aristocratas que cercavam o rei eram ricos. Alguns deles eram muito ricos. Riqueza, leia-se, significava ser dono de terras. Com a terra, o aristocrata comprava uma "comitiva armada, que reforçava ainda mais a sua ambição." (página 190)
As grandes propriedades dessa época se espalhavam por várias partes. Exemplo: o clã aristocrático agilolfingos (mais poderoso no início do século VII) tinha propriedades na Renânia, nas proximidades de Paris, governavam a Baviera, etc. 

Os aristocratas "compartilhavam seus territórios locais com outros (aristocratas). (página 192)

"Isso era muito diferente da aristocracia local assentada em um castelo do século X em diante..."
(página 192)

"O poder não era local e não precisava ser defendido por muitas muralhas; era visto como régio. Ou seja, provinha de um cargo ou da Konigsnahe, e de preferência de ambos."
(página 192)

No início, esses senhores locais não usavam de seu poder para obter uma autonomia. Mas com a involução do poder monárquico, começaram a sonhar com uma fragmentação territorial. Mas os reis de então buscavam evitar essa fragmentação, cooptando os magnatas locais.
De qualquer forma, mesmo com a tentativa do rei de cooptá-lo com presentes ou cargos, um aristocrata podia muito bem ambicionar algo maior, isto é, o próprio trono real. Essa ambição alimentava a criação de facções no interior da corte. 

A CORTE MEROVÍNGIA E O EQUILÍBRIO ENTRE O PODER CENTRAL (REI) E O PODER LOCAL:

Inicialmente, alguém era um sujeito educado e treinado para servir ao rei em sua corte. Esse alguém podia, por exemplo, cuidar do cofre do reino, das finanças do reino (thesaurarius). Esse alguém desempenhou sua função de forma tão perfeita que foi premiado com uma nomeação: foi nomeado Bispo em uma localidade qualquer da Gália. Mesmo que essa localidade ficasse longe do centro de poder, esse Bispo recém-nomeado, que fora antigo funcionário na corte régia, mantinha-se fiel a ela, pois "essas nomeações episcopais...haviam difundido uma consciência e cultura cortesãs em toda a Gália franca." (página 194)
Dessa forma, esse Bispo procedia à administração da cidade, sem perder de vista sua ligação com o rei, com a corte régia, para a qual trabalhara no passado, e graças à qual fora nomeado Bispo. Essa pessoa então tornava-se "embaixador da centralidade régia..." (página 195)
Essa prática mantinha o reino merovíngio unido.
No final do século VII, todavia, "os principados periféricos ganharam autonomia prática e alguns outros duques e bispos buscaram menos patrocínio merovíngio..." (página 195)
Somente na etapa seguinte da história franca, com a ascensão dos carolíngios, a relativa inatividade do governo central seria invertida.

ECONOMIA DURANTE A DINASTIA MEROVÍNGIA:

Os reis merovíngios eram donos de extensas áreas de terra. Tinham acesso a taxas comerciais e judiciais. Controlavam ainda o que sobrara (resquícios) do sistema romano de cobrança de impostos sobre a terra.
A base do Estado estava agora no controle da posse da terra e não mais na cobrança de impostos, prática em desuso. A consequência desse desinteresse pela tributação tinha como consequência a perda de teor de ouro nas moedas merovíngias. 

"...e Clotário II renunciou formalmente ao direito a novos impostos em 614,..."
"...cessões régias de imunidade fiscal para territórios urbanos inteiros estavam começando."
(páginas 185/186)

"Em meados do século VII, as obrigações fiscais parecem ter-se tornado tributos fixos e eram obtidos de áreas cada vez menores."
(página 186)

"É provável que o sistema tributário já estivesse em desuso, tanto que Clotário considerou que valia a pena abandoná-lo, por efeito político..."
(página 186)

Ter extensas áreas de terras substituíam a necessidade de impostos. E o exército não era pago pela corte merovíngia, pois se baseava na "nas obrigações militares dos homens livres." (página 186)
Esses exércitos de homens livres eram formados pelos Aristocratas e seus séquitos (dependentes dele). Eram ainda formados pelos Condes de cidades de seus contingentes. Não tendo que pagar salários para soldados, sobrava dinheiro para o rei merovíngio. Com essa sobre, ele dava presentes para seus cortesãos. Rei e 'maior domus' distribuíam assim presentes aos seus cortesãos. Aristocratas que rodeavam reis e 'maiores domus' esperavam sempre ganhar algo em troca de seus serviços.

REI MORTO, TERRA DIVIDIDA ENTRE SEUS FILHO:

Quando um rei da dinastia Merovíngia morria, suas posses eram divididas entre seus filhos, de maneira uniforme. Foi isso que aconteceu após as mortes de Clotário I, com Clóvis e com Dagoberto I (séculos VI e VII). 

"...viam o ato de governar como uma questão suficientemente familiar a ponto de, com a morte do rei, as terras francas serem uniformemente divididas entre seus filhos."
(página 178)

Dessa forma, com a morte de um rei merovíngio, cada filho ficava com uma porção de reino. Como por exemplo, após a morte de Chilperico (561-584), seu filho Clotário II assumiu um reino no noroeste; no nordeste, Sigeberto I e seu filho Childeberto II assumiram o domínio; e na Burgúndia, Gontrão assumiu a chefia da região. 

MORTE DE CLÓVIS - 511 (SÉCULO VI):

O período que se seguiu à morte de Clovis foi caracterizado pela luta entre seus filhos e por conquistas externas. Esse período teve alguns destaques, como a da época do rei Teodeberto I (533-548), na qual moedas de ouro foram cunhadas com seu retrato e nome.

"...essas são as primeiras moedas bárbaras que reivindicava essa prerrogativa imperial, e os romanos do oriente ficaram muito ofendidos."
(página 179)

DUQUE:

Eram poderosos aristocratas que recebiam do rei merovíngio o título de Duque, uma espécie de comandante de exército, com uma missão regional, cuidando da segurança e da administração de uma determinada área do reino. O rei merovíngio Teodeberto I (533-548) estabeleceu a família franco-burgúndia dos agilolfingos como duques da Baviera. Quando esses aristocratas não conseguiam um cargo de Duque, buscavam cargos na corte régia.

PODER FEMININO NA CORTE MEROVÍNGIA:

A Rainha-mãe (mãe de um futuro rei) podia exercer a governança do reino enquanto seu filho não atingisse a maioridade. Brunilda era mãe de Childerico. Brunilda era uma princesa visigoda, que foi influente durante toda a vida de seu filho Childerico e ainda após a morte dele. Foi regente dos descendente de Childerico. 

"Em 613, Brunilda, com 70 anos, havia angariado muitos inimigos, particularmente no Reino do Nordeste, agora conhecido como Austrásia, que ela acabara de recuperar à força. Clotário II, que até então havia sido confinado a uns poucos territórios urbanos da Nêustria, no noroeste, formou uma coalização de aristocratas e derrubou Brunilda. Ele a fez ser despedaçada em público por um cavalo, em um ato claramente concebido para marcar um novo começo, e ele e seu filho, Dagoberto I (623-639), governaram um reino mais ou menos unitário durante uma geração."
(página 181)

Recapitulando: Um reino com muitos senhores. Um rei morria e o reino era dividido entre seus filhos. 

Childerico I, um chefe guerreiro tardo-romano e rei franco assentado em Tournai. Seu filho veio a se tornar Clóvis de Tournai (481-511). Clóvis de Tournai derrotou o remanescente do Império Romano do 
Ocidente na Gália, então comandado por Sigário. Venceu ainda os Alamanos e os Visigodos do Reino de Tolosa (Toulouse), na batalha de Voillé, em 507. Clóvis morreu em 511. Com sua morte, o reino franco foi dividido entre seus 4 filhos. Era um reino único dividido entre quatro reis. Apesar dessa divisão, a unidade da sociedade franca se mantinha intacta (identidade franca + identidade galo-romana). Os quatros filhos de Clóvis deram prosseguimento à expansão do reino franco. Os francos criaram uma centralidade política, que ia de Paris a Colônia (atual Alemanha). Foi o Primeiro povo a governar ambos os lados da fronteira renana (rio Reno). Em 558, o reino franco foi reunificado, após a morte de 3 dos quatro filhos de Clóvis. No entanto, o filho sobrevivente de Clóvis,  Clotário I, dividiu-o outra vez. Em 561, com a morte de Clotário I, o reino franco foi dividido entre seus quatro filhos.

Brunilda ➧mãe de Childeberto II (575-596): Sigeberto I (561-575) tinha sido o marido de Brunilda. Childeberto II morreu em 596, mas sua mãe, Brunilda, continuou ativa na política merovíngia. Tornou-se regente de dois filhos menores de Childeberto, Teodorico II da Burgúndia e, depois, de seus bisneto, até 613, quando foi apeada do poder por Clotário II.

Gotrão (561-593) Líder na Burgúndia. Em determinado momento da história, era o único rei merovíngio adulto vivo. Tornou-se patrono de seus dois sobrinhos, Childeberto, cuja mãe era Brunilda, e Clotário II, cuja mãe era Fredegunda. 

Chilperico (561-584) e seu filho Clotário II (584-629) inicialmente no noroeste. Seu reino era o menor de todos. Não tinha fronteiras externas, razão pela qual buscava lutar contra seus irmãos. Clotário II estava confinado a uns poucos territórios urbanos na Nêustria.

Sigeberto I e seu filho Childeberto governavam o nordeste, que era o antigo reino de Teodeberto, localizado na parte nordeste do reino Merovíngio, denominada Austrásia. Manteve a hegemonia na Germânia Central e Meridional.

Em 613, como dito acima, Brunilda foi derrubada por Clotário II. A partir daí, Clotário II e seu filho Dagoberto I governaram um reino mais ou menos unitário. Unitário, mas com três cortes (o reino franco foi dividido de maneira geográfica, e não apenas de forma genealógica), cada uma delas com um sub-rei: 
➧ Nêustria (Nova Terra)
➧ Austrásia (o leste, a Pátria)
➧ Burgúndia

Cada uma dessas cortes "também tinha um único chefe aristocrático, um 'maior domus', chefe da casa real (o prefeito do palácio), de acordo com a tradução inglesa." (página 181)

O Prefeito do Palácio era uma função disputada pelos aristocratas. Até guerras eram travadas em torno dessa posição de 'maior domus'. 
Com a morte de Dagoberto I, ele foi sucedido por Sigesberto III (639-656) na Austrásia  e Clóvis II (639-657) na Nêustria, ambos menores. Sigesberto III e Clóvis II também foram sucedidos por menores. A mulher de Clóvis II, Batilda, tornou-se regente de seus filhos menores. Batilda entrou em conflito com o 'maior domus' da Nêustria, Ebroíno. 
Com efeito, a  governação se dava por regência, como no caso de Batilda, o que criava instabilidade, criando-se dois polos antagônicos: a regente (rainha-mãe) de um lado e o 'maior domus' de outro lado.
Com o passar dos anos, o poder de fato passou para os 'maiores domus', notadamente para uma família da Austrásia, os Arnulfingos-Pipinidas - início do século VIII. Era o início do fim da Dinastia Merovíngia. Os reis merovíngios já vinham perdendo força:

"Quando Childerico II (662-675) mandou amarrar e açoitar um aristocrata chamado Badilo em 674 - coisa pouca para os antigos reis - , isso foi considerado um comportamento ilegal e, aparentemente, o próprio Bodilo mandou matar o rei e a rainha em 675, precipitando uma grave crise."
(página 183)

Os merovíngios tinham cedido poderes demais aos aristocratas em troca de apoio. A tensão entre o rei e seus aristocratas/'maior domus' era constante. 

"Do meu ponto de vista (do autor do livro, Chris Wickham), o final do século VII, de fato, marca uma diminuição considerável da centralidade especificamente régia."
(página 183)

A perda do poder se deu a favor do 'maior domus', que agora escolhiam e controlavam os reis.

"Os reis continuavam a ser um polo de convergência para as facções aristocráticas, e suas cortes permaneciam fundamentais  para as aspirações políticas aristocráticas, mas os maiores (domus) e os bispos políticos se tornavam os principais protagonistas."
(página 184)

PEPINO II:

'Maior Domus', originário da Austrásia, vindo de uma rica e influente família da região de Liège, no Meuse.
Em 687, os austrasianos derrotaram os neustrianos na Batalha de Tertry. A partir dessa batalha, Pepino II se tornou o 'maior domus' de todas as terras francas.
Ainda uma nova guerra entre austrasianos e neustrianos acabou com a vitória dos austrasianos, sob o comando de Carlos Martel, um filho ilegítimo de Pepino II. Carlos Martel tornou-se 'maior domus' (717-741). A corte de Nêustria foi abolida e foi inaugurada a dinastia Carolíngia.



ANOTAÇÕES EXTRAÍDAS DA LEITURA DO LIVRO "O LEGADO DE ROMA, ILUMINANDO A IDADE DAS TREVAS, 400-1000, CHRIS WICKHAM, EDITORA UNICAMP, IMPRENSA OFICIAL, GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
Parte II, O Ocidente Pós Romano, 550-750, Capítulo 4, A Gália Merovíngia e a Germânia 500 - 751

terça-feira, 2 de junho de 2020

Queda do Império Romano do Ocidente não foi um Evento Inevitável



FIM DA UNIDADE POLÍTICA DO IMPÉRIO ROMANO DO OCIDENTE:

O Império Romano do Oriente (Constantinopla) se distanciava do combalido Império Romano do Ocidente (Roma, Trier, Ravena), tornando-se mais grego em sua cultura oficial; as leis agora eram em grego. 
No ocidente, há o fenômeno da Provincialização no final do século V. Essa provincialização foi consequência e causa da ruína do Império Romano do Ocidente.

COMO OS CONTEMPORÂNEOS VIAM O IMPÉRIO ROMANO DO OCIDENTE NO SEU OCASO:

Agostinho (autor de Cidade de Deus) considerava o Império Romano em seu conjunto. Outros só conheciam partes dele, como Salviano, que só conhecia a Gália, mas levava em conta "as imagens morais do Império, porém apenas as do Ocidente" (página 148)

Sidônio: "...era definitivamente um Gaulês. Por essa época, as elites gaulesas raramente viajavam para a Itália; mesmo que Sidônio tenha sido o Prefeito de Roma, em 468, ele foi o primeiro gaulês a ocupar esse cargo desde pelo menos 414, e também foi o último."
(página 148)

O centro do poder romano estava distante de suas províncias, alienando-as. Isso levou ao Provincialismo. Se a pessoa não tinha esperança de ascender no centro do Império Romano, ela iria concentrar suas energias na província na qual vivia. Era melhor ascender ao poder em sua província, em sua área de origem, pois não havia chances de ascender em Roma. Havia uma preferência pelo local (província) em detrimento da hierarquia do Império. Os horizontes dos habitantes do Império se estreitavam, não indo além de sua Província. 

"Uma cultura política comum pode ter sobrevivido, porém em cada antiga região ou província romana; seus pontos de referência foram se tornando cada vez mais locais e seus direcionamentos logo iriam começar a divergir."
(página 148)

A QUEDA DO IMPÉRIO ROMANO DO OCIDENTE NÃO FOI UM EVENTO INEVITÁVEL:

A queda do Império Romano do Ocidente poderia ter sido evitado. 

"A civilização romana não pereceu de morte natural. Foi assassinada." (André Piganiol - citado na página 153)

O Império Romano do Ocidente foi substituído por uma série de reinos independentes que não reivindicavam a autoridade imperial. Uma minoria dessas entidades políticas reproduziu as estruturas de governação romana. 

"Trabalhos recentes têm, de fato, representado os novos grupos étnicos em termos bem romanos."
(página 153)

Com o perecimento do Império Romano do Ocidente, houve uma simplificação econômica no ocidente. As construções ficaram menos ambiciosas. A produção artesanal ficou menos profissional. O comércio tornou-se local. 
Os Imperadores no século V, em sua maioria, eram fantoches sustentados por poderosos militares ( Estilicão, Aécio, Ricímero, Gundobaldo, Orestes, etc). A maioria deles não assumia o trono porque era composta por bárbaros étnicos (essa é uma das hipóteses). 
Outra hipótese para que esses poderosos militares não assumissem eles mesmos o trono imperial dizia respeito à sua genealogia, que não lhes davam legitimidade. 
De toda forma, era comum que bárbaros participassem da vida romana, principalmente no exército. Esses bárbaros buscavam se adequar ao mundo romano e mesmo após o colapso dele, buscavam se valer de suas estruturas para sustentarem seus próprios projetos de poder. 
Alguns líderes bárbaros, na esteira da ruína do Império Romano do Ocidente, como Odoacro e Teodorico, que governavam a Itália, tiveram sob seu governo várias etnias: romanos, godos, gépidas, hunos, rúgios, etc. 
Os bárbaros que assumiram as províncias ocidentais as renomearam:
- A Gália passou a ser Regnum Francorum
- A África passou a ser o Regnum Vandalorum

ETNOGÊNESE:

O elemento étnico é flexível. As pessoas dessa época acabavam se adaptando aos seus novos senhores e  a situações que lhe eram impostas.

"É esse o processo que foi chamado de etnogênese por Herwig Wolfram e sua escola: o reconhecimento de identidades étnicas são flexíveis, maleáveis, construções situacionais; o mesmo bárbaro, na Itália do século VI, podia ser rúgio, ostrogodo e até mesmo romano (mas isso somente a partir da reconquista romano-oriental). Tais povos teriam adquirido diferentes identidades sucessivamente (ou contemporaneamente), e essas teriam trazido diferentes modos de comportamento e lealdades, e até, eventualmente, diferentes memórias."
(página 157) 

"Como Walter Pohl propôs recentemente, o 'núcleo de tradições' que fazia alguém ostrogodo ou visigodo era, provavelmente, uma rede de crenças contraditórias e mutáveis; não parece ter havido um conjunto estável de tradições em cada grupo quando cruzaram a fronteira para prestar um serviço descontínuo no exército romano, até se tornarem um assentamento em uma província romana. Em 650, todo reino 'bárbaro' tinha suas próprias tradições, algumas delas remetendo a um passado secular; tradições essas que, sem dúvida, nessa época, eram elementos centrais dos mitos fundadores de muitos de seus habitantes."
(página 157)


MUDANÇA NA FORMA DE MANTER UM EXÉRCITO:

Com a queda do Império Romano do Ocidente, houve uma mudança na forma de se manter os exércitos. O exército pago sai de cena e entra o exército com terras.
O exército não seria mais mantido por meio de tributação. No passado, o Imperador Romano arrecadava tributos e por meio deles sustentava seu exército. A partir da queda do Império Romano do Ocidente, o sustento de um exército seria retirado da terra.

"...através de rendas derivadas da propriedade privada, o que era essencialmente produto desse desejo por terra que as elites conquistadoras demonstravam."
(página 161)

"Os maiores reinos pós-romanos ainda cobravam impostos no século VII. Mas se o exército tinha terras, o principal gasto do orçamento romano não existia mais."
(página 162)

Com o exército sendo sustentado pela terra, a administração nos reinos pós-romanos tornou-se menor e mais barata. 

"Os impostos ainda enriqueciam os reis e sua generosidade aumentava o poder de atração das cortes régias. Mas isso somente por volta de de 550. Essas taxas são sempre impopulares, e coletá-las demanda trabalho; se não forem essenciais, esse trabalho tende a ser negligenciado. Assim, não é surpreendente que existam crescentes sinais de que eles não eram assiduamente cobrados."
(página 162)

Na Gália no ano de 580, o imposto existente era na base de 1/3 do que existia na época do Império Romano. Na África vândala, a organização tributária tinha sido negligenciada.

"Os impostos, por assim dizer, não eram mais a base do Estado. Para os reis, assim como para os exércitos, a posse de terras era a maior fonte de riqueza dali em diante."
(página 162)

Nesse novo mundo, o exército tornava-se mais difícil de controlar. Quando os soldados recebiam um salário do rei, tornavam-se dependente dele. Agora não era mais assim, nesses reinos pós-romanos. 
Nesse novo mundo a quantidade de terras nas mãos do rei também diminuía, pois ele tinha que distribuí-las para comprar a lealdade de um exército. 

"Os Estados cuja base é a propriedade de terra correm o risco de se fragmentarem, de fato, pois seus territórios periféricos são difíceis de dominar totalmente e podem separar-se por completo."
(página 163)

Por outro lado, os Estados que arrecadavam tributos mantinham funcionários espalhados pelo reino. Esses funcionários eram assalariados e dessa forma dependentes do rei, atuando em nome dele em áreas que ficavam distantes da corte.

Resumo: Nos reinos pós-romanos houve uma transição da taxação para a distribuição de terra. Ao mesmo tempo, verificou-se uma retração econômica: havia menos trocas comerciais; produção artesanal menos profissional; 


ALGUMAS NOVIDADES TRAZIDAS PELOS 'BÁRBAROS PARA OS REINOS ROMANO-GERMÂNICOS:

- Consumo excessivo de carne
- Assembleias Públicas: Reunião de homens adultos e livres para decidir sobre política e guerra. Nessas Assembleias também eram discutidas propostas de lei disputas eram arbitradas. 
- Esses homens adultos e livres tinham obrigações militares

No decorrer do século V, chefes bárbaros adaptavam-se ao mundo romano. As elites romanas, por sua vez, também se adaptar à nova realidade.
Nas províncias romanas conquistadas pelos bárbaros, a elite bárbara assumia a condição de governante, imitando a forma como os aristocratas romanos agiam durante a expansão romana. A elite bárbara deitou a mão em grandes propriedades de terras. 

A ELITE BÁRBARA:

As elites dos reinos pós-bárbaros não eram tão ricas quanto as elites romanas. A elite do Império Romano valia-se da unidade proporcionada por um Império, que possibilitava ter terras em locais distantes.

"...a complexidade econômica dependia da unidade imperial."
(página 164)

Houve também uma mudança na aristocracia. Na época do Império Romano, a aristocracia era composta, em sua maioria, por civis. Com a entrada das elites bárbaras, a aristocracia passou a ser mais militarizada.
E fora da carreira militar, havia a Igreja, cuja riqueza atraia os aristocratas.

"Ser um bispo era, algumas vezes, uma opção de aposentadoria..."
(página 166)

POR QUE O IMPÉRIO ROMANO DO OCIDENTE DESAPARECEU ENQUANTO O IMPÉRIO ROMANO DO ORIENTE PERMANECEU?

As fronteiras do Império Romano do Ocidente eram mais visadas e expunham mais seu centro de poder. Se as fronteiras no norte da Gália, no Danúbio fossem rompidas, o centro de poder estaria exposto. Por outro lado, no Império Romano do Oriente, ataques nos Bálcãs não chegavam em Constantinopla, deixando o resto do Império em paz.

➤ Outros motivos:

Povos Bárbaros Federalizados:

Os romanos do Império Romano do Ocidente geralmente aceitavam que grupos bárbaros entrassem em seu território, na condição de Federados. Num primeiro momento essa política funcionou, como no caso dos Visigodos que se instalaram na Gália (Toulouse - futuro Reino de Tolosa, atual França). Mas o plano de receber bárbaros como Federados desandou com o passar do tempo. Federados tornavam-se inimigos. Territórios cedidos aos bárbaros deixavam de arrecadar tributos que deveriam ser canalizados para o exército romano. 

Perda das Províncias africanas:

Outro duro golpe para o Império Romano do Ocidente foi a perda da África do norte (atuais Argélia, Tunísia) para os vândalos, em 439 (século V). As províncias do norte da África eram o celeiro do Império Romano do Ocidente, fonte de exportação de cereais. A perda dessa província empobreceu ainda mais o Império Romano do Ocidente, de forma que agora havia menos dinheiro para manter o exército romano.

Provincialização da Política:

Elites locais romanas agora não olhavam mais para o centro de poder do Império. Buscavam ascender em sua província, deixando de lado a ambição por ascender no centro de poder do Império. Os horizontes das elites provinciais tinham se estreitado. Para essa elite, o mundo agora era a sua província, não mais o Império. Com o tempo, essas mesmas elites passaram a lidar com as elites bárbaras assentadas em suas províncias, deixando de lado o relacionamento com as elites romanas. A realidade era que o equilíbrio do poder tinha mudado.

Enquanto isso, o Império Romano do Oriente, com seu centro de poder em Constantinopla, sobreviveu e ainda experimentou alguns momentos de bom desenvolvimento durante o século VI e início do século VII. A coisa degringolou no Império Romano do Oriente a partir de 618, quando seus territórios ricos em alimentos, no Egito e no Levante, foram perdidos, primeiro para a Pérsia, depois para a expansão do Islã. 

ANOTAÇÕES EXTRAÍDAS DA LEITURA DO LIVRO "O LEGADO DE ROMA, ILUMINANDO A IDADE DAS TREVAS, 400-1000, CHRIS WICKHAM, EDITORA UNICAMP, IMPRENSA OFICIAL, GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, capítulo 3, Crise e Continuidade, 400-550.



quinta-feira, 21 de maio de 2020

Estilicão Visigodos Alarico Roma Saqueada 410 Cidade de Deus Agostinho Deficit nas contas de Roma Ricímero Gália Séculos V e VI Mundo Pós Romano



PERMANÊNCIAS E MUDANÇAS DIVIDIDAS EM ÉPOCAS:

Até o ano 425:
Estilicão
Godos (Visigodos): mataram um general romano no interior do Império Romano, na batalha de Adrianópolis, no ano de 378
Autor Chris Wickham compara o saque de Alarico a Roma (410) com os ataques do 11 de setembro aos EUA

Estilicão, comandante militar dos exércitos ocidentais e homem forte do início do século V. Estilicão enfrentou Alarico, o chefe guerreiro dos Godos, que procurava um lugar para assentar seu povo no interior do Império Romano. Os Godos entraram pela primeira vez no Império Romano no ano de 376. Venceram um exército romano em Adrianópolis (atual Edirne, na Turquia), em 378. 
Os Godos foram deixados em paz no ano de 380, na Ilíria e na Trácia (Bálcãs). Os Godos chegaram a lutar ao lado dos romanos, em 394 
Mas o acordo entre romanos e godos (visigodos) chegou ao fim, de forma que estes voltaram a atacar, invadindo a Grécia. Em 401, os godos entraram na Itália Setentrional (norte da Itália). Estilicão os derrotou e os empurrou de volta à Ilíria, em 402. 
Mas os Visigodos iriam voltar em 408. Nessa mesma época, outros grupos bárbaros forçavam as fronteiras do Império Romano do Ocidente. Vândalos atravessaram o Rio Reno em 406. Outras crises ainda aconteciam. Estilicão, após um motim, é executado em 408. 
Em 410, Alarico, chefe guerreiro dos Visigodos, saqueou Roma, ..."um evento que chocou o mundo romano da mesma forma que o 11 de setembro de 2001 chocou os EUA..."
(página 136)

Mas esse saque não teve outras repercussões e os visigodos continuaram buscando um assentamento definitivo. No fim, os visigodos estabeleceram-se nas proximidades da cidade de Toulouse (atual França), em 418, criando o Reino de Tolosa. 

QUATRO IMPERADORES EM 411:

A maioria desses imperadores era protegida por grupos bárbaros rivais. Até que finalmente surgiu Constâncio, que pôs fim à balbúrdia, unindo o exército em torno de si e derrotando todos os 4 pretendentes a imperador.

O ORIENTE ROMANO NO SÉCULO V:

O Oriente enfrentou menos traumas durante o século V. Os Bálcãs eram visitados normalmente por invasores 'bárbaros', inclusive pelos hunos, mas Constantinopla, em sua borda, estava muito bem protegida; ademais, a riqueza do Império Romano do Oriente não estava nos Bálcãs, mas no Egito e no Levante, distantes portanto do tumulto causado pelas incursões dos 'bárbaros'.

"Acima de tudo, a Pérsia sassânida, tradicional inimiga dos romanos no oriente, estava em paz com o Império por quase todo o século V..."
(página 137)

Naquele momento, havia uma relação mais estreita entre poder secular e espiritual no Oriente do que no Ocidente. A maioria dos chefes políticos no oriente era composta por civis e não por militares. esses chefes "governavam em nome de Arcádio e de seu igualmente inativo filho Teodósio II (408-450). Em 381 o Patriarcado foi estabelecido no Império Romano do Oriente e desde já buscava protagonismo nas políticas seculares do Império, de uma maneira que o Papa, no Ocidente, ainda não era capaz de fazer.

"A relação Igreja-Estado também permaneceria muito mais íntima no Oriente no futuro exceto, muito tempo depois, durante o período carolíngio."
(página 138)

Em 425 (século V), o Oriente era estável  e experimentava um situação econômica confortável, que iria permanecer até o início do século VII. 

O OCIDENTE ROMANO NO SÉCULO V:

A maioria das fronteiras ainda era guardada por tropas romanas. Havia grupos bárbaros assentados no interior do Império Romano do Ocidente, dissociados da hierarquia militar romana. Esses grupos eram constituídos pelos Visigodos, em Toulouse (atual França), remanescente da horda Vândala, no oeste da Espanha, os suevos no norte, etc. Todos esses grupos tinham sido derrotados pelos romanos e os visigodos estavam numa aliança federativa com os romanos (federação com Roma). A situação era instável nas províncias setentrionais (norte) do oeste, ao norte do Rio Loire. A fronteira mais ao norte da Gália foi cada vez mais povoada por francos, vindos da outra margem do Rio Reno. A Britânia (atual Grã-Bretanha), foi abandonada pelos romanos em 410.

ESPERANÇA ROMANA: BÁRBAROS TROCARIAM AS ESPADAS PELOS ARADOS. A CIDADE DE DEUS DE AGOSTINHO, ESCRITA EM REAÇÃO AO SAQUE DE ALARICO A ROMA, EM 410. 

A esperança expressada por alguns romanos (Orósio, ano 417, página 138) residia na ideia de que os bárbaros, com o tempo, abandonariam a espada e passariam a adotar o arado. Deixariam de lado a guerra e passariam a ser pacíficos agricultores. Os bárbaros ainda passariam a ver os romanos como amigos.

"Nesse mesmo período, entre 413 e 425, para ser exato, Agostinho escreveu sua monumental obra A Cidade de Deus, inicialmente como reação ao saque de Roma. Agostinho foi, de fato, cuidadoso em não atribuir demasiada importância ou longevidade ao grande experimento imperial romano, pois a cidade celestial é separada das formas políticas terrenas."
(página 138/139)

Agostinho acreditava que o mundo acabaria em breve. Mesmo assim, Chris Wickham esclarece que "não há indicações aqui de que qualquer pessoa esperasse ou temesse o fim do Império."
(página 139)

GERAÇÃO SEGUINTE: ANO 455 (SÉCULO V):

No Império Romano do Oriente a política ia bem, sem sobressaltos, exceto pelas incursões do Hunos nos Bálcãs. O Imperador do Oriente, Teodósio, realizou a compilação das leis orientais e ocidentais sob o Código Teodosiano no ano de 438. Sob seu governo, dois grandes concílios eclesiásticos foram realizados, em Éfeso (431) e na Calcedônia (451).
No Ocidente (Império Romano do Ocidente) a situação era diversa.

"O ocidente conheceu mais problemas."
(página 139)

Aécio, então governante do ocidente (magister militum ou magister militium - há duas grafia no livro) - 433/454, tinha seus interesses mais concentrados na Gália.

"A responsabilidade por deixar os Vândalos tomarem Cartago é essencialmente dele."
(página 139)

Aécio, de fato, preocupava-se mais em manter a Gália estável. Aécio tinha pacificado os Visigodos em 439. Ainda na Gália, outros grupos bárbaros também foram cooptados pelos romanos: alanos e os burgúndios, que foram assentados pelo próprio Aécio no vale do Baixo Loire e no Alto Ródano (anos 442/443).
A Itália, naquela altura, estava segura. A África tinha sido perdida para os Vândalos. A Espanha também tinha sido perdida para os Vândalos e depois para os Suevos.

DEFICIT NAS CONTAS DO IMPÉRIO ROMANO DO OCIDENTE:

A tributação então existente já não conseguia arrecadar dinheiro para sustentar o exército romano. A solução seria aumentar os impostos.

"Por volta de 440, Salviano de Marselha escreveu um longo e inflamado sermão chamado "Sobre o Governo de Deus', que atribuía os fracassos do romanos contra os (obviamente inferiores) bárbaros aos seus próprios pecados: notadamente a injusta e excessiva taxação, o entretenimento público e a permissividade sexual."
(página 140)

"Esse é o tipo de coisa que os pregadores cristãos extremistas sempre disseram (e ainda dizem), e seus detalhes não podem ser levados muito a sério. Não podemos concluir, por exemplo, que as províncias ocidentais realmente estavam destruídas pela alta tributação, e seria melhor ver a obra de Salviano como uma prova da contínua eficácia do sistema fiscal. Porém, é sem dúvida verdade que a visão que Salviano tinha do Ocidente agora incluía os bárbaros como agente políticos estáveis, alternativas ao domínio romano... Salviano pensava que os romanos muitas vezes escolhiam ser governados por bárbaros a fim de escapar das injustiças do Estado romano. Isso provavelmente não era comum no anos 440, mas já era possível imaginar uma coisa dessas. No Oriente (Império Romano do Oriente), o historiador Prisco, ao discutir acerca dos hunos, nessa mesma época, escreveu algo parecido."
(página 140)

O Hunos, mencionados pelo historiador Prisco, na década de 420, tinham se assentado fora do Império Romano, no meio do que hoje é a Hungria, numa época na qual Átila ainda não tinha surgido (435-453)

INVASÃO DOS HUNOS:

Em 440, Ostrogodos e Gépidas se uniram aos Hunos. Com isso, os Hunos invadiram a Gália (451) e a Itália (452). Mas Aécio, com a ajuda dos Visigodos, os derrotou na Gália. Átila morreu em 453 e a disputa pelo seu legado  (entre seus filhos e e entre os povos subjugados) destruiu o poder huno (454/455)
Aécio, que tinha derrotado os Hunos no campo de batalha, foi assassinado por aquele que iria se tornar o próximo Imperador, Valentiniano III, que morreu um ano depois.

DÉCADA DE 450 (SÉCULO V):

"...ainda conheceu um certo nível de estabilidade no no Ocidente. Ele agora continha 6 governos bárbaros, com os quais qualquer chefe romano teria de lidar, embora ainda mantendo uma posição de força."
(página 141)

Com a morte de Valentiniano III, Ávito, um ex-general de Aécio e Senador em Auvérnia, no centro de Gália, assume o cargo de Imperador. E quem o persuadiu a tomar o poder foi um bárbaro, Teodorico II, rei dos Visigodos.

DÉCADA DE 460-470:

Ávito é derrotado pelo exército italiano de Majoriano e Ricímero. Com a queda de Ávito, Majoriano torna-se Imperador. Majoriano acaba sendo assassinador pelo seu Magister Militum, Ricímero. Ricímero governará até 472, por meio de Imperadores "praticamente todos fantoches" (página 142)

Em 468, Antêmio, um dos Imperadores Fantoches de Ricímero, ao lado do general oriental Basilisco (cunhado do Imperador Leão I do Império Romano do Oriente), empreendeu um ataque aos Vândalos no norte da África, que resultou em um fracasso total. Essa ação de Ricímero foi uma exceção, pois ele preferia concentrar suas forças na Itália e no sudeste da Gália. Buscava defender essas áreas, contando com a ajuda do Príncipe Burgúndio Gundobaldo (476-493).
O interesse de Ricímero apenas pela Itália e pelo sudeste da Gália "é um sinal claro que os horizontes imperiais estavam encolhendo." (página 142)

ODOACRO. NOS PRIMEIROS ANOS QUE SE SEGUIRAM À RUÍNA DO IMPÉRIO ROMANO DO OCIDENTE, A ITÁLIA FOI PRESERVADA DE INVASÕES:

Era o chefe na Itália. Não era mais visto como Imperador do Ocidente. Era um chefe militar. Era o chefe militar supremo da Itália. Odoacro tampouco quis nomear um Imperador para o Ocidente. O Senado disse que um Imperador seria o suficiente para aquele momento, razão pela qual fez chegar ao Imperador do Oriente, Zenão, o desejo para que ele assumisse a governação da parte ocidental.
Odoacro então "governou a Itália em nome de Zenão, como patrício (patricius). Mas mesmo assim, na Itália, Odoacro se autointitulava Rex, rei." (página 143)

"O ano de 476 é a data tradicional para o fim do Império do Ocidente, com a derrubada, na Itália, do último Imperador, Rômulo Augústulo, embora seja possível considerar o ano de 480, pois Julio Nepos, o predecessor de Rômulo, governou a Dalmácia até então. Mas a Itália é, na verdade, a região do Império Ocidental que viveu menos alterações nos anos 470, já que Odoacro governava ao modo de Ricímero à frente de um exército regular. A Itália não experimentou nenhuma invasão ou conquista até 489-493, com a chegada de Teodorico Amalo e seus Ostrogodos, porém Teodorico governou da maneira mais romana possível (489/526). O fim do Império foi experimentada de maneira mais direta na Gália."
(página 143)

FIM DO IMPÉRIO ROMANO NA GÁLIA:

"O fim do Império foi experimentada de maneira mais direta na Gália."
(página 143)

Na Gália houve o avanço dos Visigodos. Eles já ocupavam a região em torno da cidade de Toulouse (Reino de Tolosa). Mas eles queriam mais. Além da Gália, foram ainda para a Espanha. Em seu avanço pela Gália, cercaram a cidade de Clermont, na Auvérnia (471/475). Em Clermont vivia Sidônio Apolinário (bispo e senador romano), que vivenciou e relatou as mudanças políticas de sua época. Sidônio, vendo a Gália sendo abandonada pelo Império Ocidental, lamentava "...agora que os antigos graus de hierarquia oficiais foram varridos...o único símbolo de nobreza passará a ser o conhecimento das letras." (página 144)

"...a hierarquia oficial tinha desaparecido, apenas a cultura tradicional romana sobreviverá."
(página 144)

Ainda na Gália, Burgúndios e Visigodos no Vale do Ródano, na Provença. Ainda surgiriam os Ostrogodos.
No norte da Gália havia ainda exércitos que ainda defendiam a autoridade de Roma, sob a liderança de Egídio, um general bretão.
Ainda no norte da Gália, um novo personagem surgia: Clóvis de Tournai (481-511). Clóvis iria se tornar o líder dos Francos, no início de um processo que resultaria no domínio da Gália pelos Francos.
O norte da Gália, ao norte do rio Loire, era um terreno mais difícil para o enraizamento da cultura romana. Havia, por exemplo, poucas Villae, ricas residências rurais de aristocratas (elites civis) que cultivavam as tradições culturais romanas.
No sul da Gália, reis burgúndios e visigodos governavam suas áreas, valendo-se de civis romanos e até de generais romanos.

"Mas, em todos os lugares da Gália, as últimas duas décadas do século V foram definitivamente pós-imperiais, no sentido de que meia dúzia de governantes se enfrentou sem nenhuma mediação, nenhuma hegemonia distante  baseada em Roma/Ravena na qual se espelhar."
(página 145)

REGIÕES PÓS-ROMANAS ANO 500 d.C.:

- GÁLIA: Burgúndios, Visigodos e Francos
- ÁFRICA: Vândalos
- ITÁLIA
- NORICUM: Atual Áustria. Os bárbaros da área, os rúgios, não atravessaram o rio Danúbio, mas saqueavam e cobravam tributos dos indefesos romanos que viviam na margem oposta do Danúbio (anos 470). A vida em Noricum era miserável. Os bárbaros percorriam livremente os campos enquanto os romanos ficavam nas cidades e em fortificações. Não havia mais uma liderança política vinda de Roma. Essa terra de ninguém também poderia ser encontrada em áreas como a Gália do norte, na Britânia e em partes da Espanha.

"Mas a maior parte do ocidente estava, apesar de tudo, sob o controle de sistema de governo mais estáveis (e mais romanos), sejam eles gótico, burgúndio ou vândalo."
(página 146)

A unidade do Império Romano sobreviveu apenas no Oriente (Constantinopla).

IMPÉRIO ROMANO DO ORIENTE - CONSTANTINOPLA - FINAL DO SÉCULO V:

Godos forçavam as fronteiras do Império Romano do Oriente na região dos Bálcãs. Mas nada que alterasse a estabilidade do Império. Imperador Anastácio (419-518) estabeleceu um governo virtuoso, que tirou as finanças do Império do negativo.

SECULO VI:

No Oriente a estabilidade era mantida. No Ocidente havia mudanças, "mas ainda havia elementos de estabilidade." (página 147)

Na Itália, o 'bárbaro' Teodorico governava a Itália desde a cidade de Ravena, adotando uma tradicional administração romana. O 'bárbaro' Teodorico era respeitoso com o Senado Romano e com a cidade de Roma, visitando-a formalmente. Sob Teodorico, os sistemas fiscal e administrativo pouco tinham mudado.

"Os mesmos proprietários de terra tradicionais dominavam a política, ao lado de uma nova (mas parcialmente romanizada) elite militar goda ou ostrogoda."
(página 147)

Contemporâneos de Teodorico, havia o Reino Visigótico no sul da Gália e na Espanha, com centro em Toulouse, sob o governo de Alarico II (484/507).
Esses Godos (Visigodos) eram cristãos arianos (não católicos) e e figuras militares, "mas em outros aspectos, estavam adquirindo os valores romanos rapidamente." (página 147)

Vândalos, na África, e Burgúndios iam na mesma direção dos Visigodos.

"De certa forma, a Gothia realmente tinha substituído a Romania, mas o fizera, em grande parte, imitando os romanos."
(página 148)

ANO 500 - FRONTEIRAS APROXIMADAS:

REINO VISIGODO: Cidades de Toledo (centro da atual Espanha), Mérida (atual Espanha), Toulouse e Narbonne, Clermont, Arles, Tours - Rio Loire - (atual França).

DOMÍNIO OSTROGODO: Península Itálica : Roma, Ravena, Milão, Dalmácia (atual Croácia).

DOMÍNIO VÂNDALO: Norte da África, Cartago, atual Tunísia.

SUEVOS: Noroeste da Península Ibérica; cidade de Braga; atuais Espanha e Portugal.

BASCOS: norte da atual Espanha e parte sudoeste da atual França

BURGÚNDIOS: Lyon, atual França, Suíça.

REINO FRANCO: Paris, Tournai (atual França); Colônia (atual Alemanha).

BRETONS: Bretanha, atual França

ATUAIS GRÃ-BRETANHA E IRLANDA: Pictos (atual Escócia), Anglo-Saxões no leste British/Welsh no oeste (atual País de Gales). Na irlanda, os Irish.

VALE DO RIO ELBA: Norte - viviam os Saxões.

DANES: atual Dinamarca.

IMPÉRIO ROMANO DO ORIENTE - EAST ROMAN EMPIRE: Ficaria conhecido como Império Bizantino, com capital em Constantinopla. Possuía a Grécia, os Bálcãs, a atual Albânia, Palestina, Ásia Menor (atual Turquia), etc.

ANOTAÇÕES EXTRAÍDAS DA LEITURA DO LIVRO "O LEGADO DE ROMA, ILUMINANDO A IDADE DAS TREVAS, 400-1000, CHRIS WICKHAM, EDITORA UNICAMP, IMPRENSA OFICIAL, GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, capítulo 3, Crise e Continuidade, 400-550.


segunda-feira, 11 de maio de 2020

Queda do Império Romano Nada Mudou Mas Tudo Mudou Primeiro autor a datar a ruína do Império Romano em 476 A queda do Império Romano do Ocidente poderia ter sido evitada



BÁRBAROS NO PODER IMITAVAM A GOVERNAÇÃO ROMANA:

No ano de 484, Hunerico, rei dos Vândalos, no Norte da África, onde antes havia uma Província Romana, agia como os romanos.
Ele era ariano e considerava as práticas católicas dos romanos como heresia. Para os arianos como Hunerico, Jesus Cristo foi somente um homem. Era apenas humano, sem dimensão divina, como acreditavam os cristãos católicos.
O que importa aqui é que Hunerico emulava o comportamento dos Imperadores Romanos, que desencadeavam processos de heresia contra qualquer um que viesse a desafiar o entendimento esposado pelo catolicismo.
No passado, sob o Império Romano, os católicos estavam na posição de acusadores, perseguidores. Os romanos católicos queriam impor o cristianismo católico para todosExemplo: disputa entre donatistas e católicos, em 411 (século V). Agora, sob o reinado de Hunerico, eram os católicos que estavam na posição de perseguidos e heréticos. Os vândalos queriam impor o arianismo para todos, perseguindo quem pensasse de forma diversa.

"Assim, é possível ver os vândalos como uma versão dos próprios romanos."
(página 133)

"Hunerico gostava de ser um Imperador romano no modo de perseguir..."
(página 132)

Como dissemos acima, Hunerico era o chefe/rei dos Vândalos. 

"O uso moderno de seu nome mostra a má reputação que eles já tinham..."
(página 132)

Os vândalos eram acusados de crueldade e opressão; chegada violenta à África em 429; estilo de vida luxurioso. Genserico (428/477), pai de Hunerico, levou os Vândalos da Espanha para a Numídia (província romana no norte da África). Conquistaram Cartago. Pilharam a Sicília, conquistaram a Sardenha e saquearam Roma em 455.
Apesar de perseguirem os cristãos católicos, "há evidências que mostram que os vândalos acreditavam ser muito romanos." (página 132)

"A administração vândala parece ter sido quase idêntica à administração romana da província da África e composta por africanos..."
(página 133)

"...a moeda era uma adaptação criativa de moedas romanas."
(página 133)

PERDER A ÁFRICA DO NORTE PARA OS VÂNDALOS OCASIONOU UM GRAVE PREJUÍZO PARA O IMPÉRIO ROMANO DO OCIDENTE:

Os Vândalos governavam a África como uma aristocracia militar fundiária, etnicamente distinta. As terras que pertenciam os romanos foram expropriadas.
A presença dos Vândalos no norte da África impactaram Roma de forma grave. A principal área exportadora de alimentos para o Império Romano do Ocidente caiu nas mãos dos 'bárbaros'. O corte desse fornecimento de alimentos ocasionou a diminuição da população romana. O comércio que havia entre Cartago e Roma caiu por terra. Roma passou a enfrentar uma crise fiscal, quando mais precisava de dinheiro para manter seu exército. 

"Não ter previsto que Genserico tomaria Cartago, apesar de um tratado afirmado em 435, é indiscutivelmente o principal erro estratégico do governo imperial no século V."
(página 134)

Cartago só voltaria a ser romana (Império Romano do Oriente - Império Bizantino) em 533/534.

SÉCULO V. NAS RUÍNAS DAQUILO QUE TINHA SIDO O IMPÉRIO ROMANO DO OCIDENTE. MUNDO PÓS-ROMANO:

Frase de Impacto sobre a Queda do Império Romano:
"nada mudou, mas tudo mudou." (páginas 134/135)

A queda do Império Romano do Ocidente foi algo que poderia ter sido evitado: "Os acontecimentos do século V não eram inevitáveis, e não foram percebidos como tal pelas pessoas que os vivenciaram.." (página 134/135)


Com a queda do Império Romano do Ocidente, nada mudou, mas tudo mudou
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"...repetidas vezes os exércitos 'bárbaros' ocuparam províncias romanas, as quais eles administravam de maneiras romanas; nada mudou, mas tudo mudou. No ano 400, os Impérios Romanos Ocidental e Oriental eram gêmeos, governados por irmãos (Honório e Arcádio, os dois filhos de Teodósio I, que governaram entre 395 e 423 e 395 e 408, respectivamente), com pouca diferença estrutural entre eles...Em 500, o Oriente quase não tinha sido afetado (na verdade, ele estava passando por um boom econômico), mas o Ocidente se encontraria dividido em meia dúzia de grandes seções."
(páginas 134/135)

Divisões daquilo que tinha sido o Império Romano do Ocidente:

⏩África Vândala
⏩Espanha Visigótica e Sudoeste da Gália
⏩Burgúndia (Sudeste da Gália)
⏩Norte Franco da Gália
⏩Itália Ostrogótica (incluindo a região dos Alpes)
⏩Outras regiões menores

"Os maiores sistemas políticos ocidentais eram todos regidos por uma tradição romana, embora fossem mais militarizados, suas estruturas fiscais estivessem mais fracas, tivessem menos relações inter-econômicas..."
(páginas 134/135)

"Uma grande mudança havia ocorrido sem que ninguém, em particular, a planejasse."
(páginas 134/135)

O primeiro autor a falar que o Império Romano do Ocidente havia ruído no ano de 476: Marcelino Comes, residente em Constantinopla, escrevendo no ano de 518:
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"Os acontecimentos do século V não eram inevitáveis, e não foram percebidos como tal pelas pessoas que os vivenciaram. Nesse período, ninguém via que o Império do Ocidente estava 'caindo'. O primeiro autor a especificamente datar seu fim (em 476) foi um cronista residente em Constantinopla, Marcelino Comes, que escreveu por volta de 518."
(páginas 134/135)


ANOTAÇÕES EXTRAÍDAS DA LEITURA DO LIVRO "O LEGADO DE ROMA, ILUMINANDO A IDADE DAS TREVAS, 400-1000, CHRIS WICKHAM, EDITORA UNICAMP, IMPRENSA OFICIAL, GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, capítulo 3, Crise e Continuidade, 400-550.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Lebensraum Espaço Vital Timothy Snyder Ideia Judaico-Bolchevique



SEGURANÇA ALIMENTAR:

Hitler queria buscar uma reserva regular de alimentos. Essa reserva proporcionaria segurança e controle para o regime. Hitler sabia das consequências da fome causada pelo Bloqueio Marítimo Britânico. A fome causada pelo bloqueio naval britânico "forçara alemães da classe média a desrespeitar a lei para conseguir alimentos de que necessitavam ou que achavam que necessitavam, causando insegurança no âmbito pessoal e desconfiança em relação às autoridades." (página 27)


O IMPÉRIO BRITÂNICO CONTROLAVA REDE DE DISTRIBUIÇÃO DE ALIMENTOS:

Durante a Primeira Guerra Mundial, a Força Naval Britânica estrangulou o Império Alemão, impedindo o seu acesso a alimentos. Hitler não se esquecia disso. Para Hitler, o Livre Comércio propagandeado pelo Império Britânico era uma falácia, pois ele era usado como um disfarce, atrás do qual se escondia domínio britânico dos mares. Esse controle dos ingleses das rotas marítimas dava a eles o poder de controlar o abastecimento de alimentos no mundo todo. Durante a Primeira Guerra Mundial, os britânicos violaram o Livre Comércio tão defendido por eles, estabelecendo um bloqueio que impedia que qualquer país vendesse alimentos para o Império Alemão.

"A capacidade de prover alimentos e de negá-los, enfatizava Hitler, era uma forma de poder. Hitler chamava essa falta de segurança alimentar para todos menos para os britânicos, de "guerra econômica pacífica'." 
(página 28)

Essa hegemonia britânica só seria quebrada se a Alemanha expandisse se território de forma a adquirir áreas que a tornasse autossuficiente na produção de alimentos.

"...na visão de Hitler, pela conquista de um império territorial que equilibrasse a balança entre Londres e Berlim."
(página 28)

Obtido esse equilíbrio, a Alemanha então poderia se igualar à Grã-Bretanha.
Nas décadas de 20 e 30, a Alemanha poderia alimentar sua população com alimentos extraídos de seu território somente , mas isso, na visão de Hitler, seria feito em detrimento de parte de sua indústria, de suas exportações e de suas reservas em moeda estrangeira.

EXPANSÃO TERRITORIAL ALEMÃ, EM BUSCA DE ÁREAS AGRICULTÁVEIS. PRODUÇÃO DE ALIMENTOS:

A expansão territorial alemã deveria ser feita de modo a não despertar a oposição britânica.

"A ideia era se infiltrar em sua rede de poder sem força-los a reagir. Tomar terras de outros não ameaçaria o grande império marítimo (britânico), ou assim imaginava Hitler. No longo prazo, ele esperava fazer a paz com a Grã-Bretanha na base da divisão do mundo." 
(página 28)

Hitler via nos britânicos 'parentes raciais', que mereciam respeito pelo grande Império que tinham criado.
A expansão territorial sonhada por Hitler encontrava sua fonte inspiradora no exemplo dos Estados Unidos da América (EUA). Durante o século XIX, os EUA se expandiram para o oeste, passando por cima dos povos indígenas que habitavam essa área da América do Norte.

"Para gerações de alemães imperialistas e para o próprio Hitler, o império território exemplar eram os EUA."
(página 29)

"Os americanos ensinaram a Hitler que a necessidade se confunde com o desejo, e que o desejo nasce da comparação." 
(página 29)

O desejo alemão de obter um espaço vital, no qual sua segurança alimentar estaria assegurada, para nunca mais sofrer com as agruras da fome, como experimentado durante o Bloqueio Naval Britânico na Primeira Guerra Mundial, nascia com a comparação com o exemplo dos EUA, que obtiveram um enorme espaço territorial expandindo a Oeste

SONHO AMERICANO DE HITLER:

Num mundo no qual as informações corriam de forma mais rápida, um alemão poderia comparar a sua vida com a de um americano. E dessa comparação, nasceria o desejo de ter um padrão de vida semelhante ao do americano. E se esse desejo não se concretizasse, poderia nascer daí uma frustração e descontentamento com a ordem vigente.
Mas para alcançar um padrão de vida americano, era necessário ter acesso aos mesmos recursos que os americanos tinham. No caso da Alemanha, esses recursos viriam por meio de sua expansão para o Leste, conquistando o seu Lebensraum, o seu espaço vital. Os alemães, portanto, só alcançariam o padrão de vida americano se obtivessem êxito em sua expansão para o leste.

A VARIÁVEL ERA A QUANTIDADE DE TERRA:

"A presença inevitável dos Estados Unidos na mente germânica foi a razão definitiva pela qual para Hitler, a ciência não resolveria o problema do sustento. Mesmo que as inovações melhorassem a produtividade agrícola, a Alemanha não poderia se manter no ritmo dos americanos, valendo-se apenas delas. O progresso tecnológico certamente se daria nos dois lados; a variável era a quantidade de terra agricultável. Portanto, a Alemanha precisaria de tanta terra e de tanta tecnologia quanto os americanos. Hitler proclamava que a luta permanente pela Terra era um desejo natural, mas sabia que o desejo de aumentar o conforto relativo também era capaz de gerar um moto-perpétuo."
(página 30)

VISÃO SOMBRIA DE HITLER QUANTO AO FUTURO DA ALEMANHA:

A visão de Hitler quanto ao futuro da Alemanha era sombria. Para ele, o território alemão, mesmo que acrescido daquilo que tinha perdido com o Tratado de Versalhes, ainda assim seria insuficiente para dar aos alemães uma vida comparável aos dos americanos.

LEBENSRAUM - ESPAÇO VITAL:

Lebensraum, o espaço vital, não foi um termo criado por Hitler. Hitler se apropria dele para seus próprios fins. Para Hitler, o Lebensraum comportava a ideia subjetiva de se obter um alto padrão de vida para os alemães, conjugada com a luta racial incessante pela sobrevivência física. Esse Lebensraum de Hitler era justificado como uma luta natural. Era algo natural, extraído da própria natureza, fazendo parte do processo natural da vida, consubstanciado pelo desejo de uma vida melhor, confortável, ao lado de uma luta racial incessante pela sobrevivência física.

"O termo Lebensraum entrou para a língua alemã como equivalente da palavra francesa 'biotope', ou 'habitat'. Num conceito mais social que biológico, ela pode significar algo além: conforto doméstico, algo próximo a 'sala de estar'. A convergência desses dois significados numa única palavra ampliou a ideia circular de Hitler: a natureza não era nada além de sociedade, a sociedade não era nada além de natureza. Portanto, não havia diferença entre a luta dos animais pela existência física e a preferência das famílias por uma vida melhor. Tudo era sempre lebensraum."
(páginas 30/31)

Outras definições de Lebensraum. Mas todas elas apontam para uma mesma direção: luta racial pela sobrevivência física e busca de conforto material:

Robert Ley, um dos primeiros companheiros nazistas de Hitler:

"...lebensraum é mais cultura, mais beleza - coisas que a raça deve ter, ou perecerá."

Joseph Goebbels, marqueteiro de Hitler, definiu assim o propósito da guerra de extermínio:

"...como um bom desjejum, um bom almoço e um bom jantar"
(páginas 30/31)

"Dezenas de milhões de pessoas passariam fome, mas não para que os alemães pudessem sobreviver no sentido físico da palavra. Dezenas de milhões de pessoas passariam fome para que os alemães pudessem lutar por um padrão de vida sem igual."
(página 31)

ONDE ESTARIA O LEBENSRAUM ALEMÃO? NA ÁFRICA? NA EUROPA?:

Quando a Alemanha finalmente se uniu, em 1871, num Império sob o comando da Prússia, o processo de colonização já estava praticamente finalizados. A Alemanha chegou atrasada à festa. As melhores colônias já tinham sido repartidas entre França, Grã-Bretanha, Bélgica, Holanda, etc. E para piorar, quando perdeu a Primeira Guerra Mundial, a Alemanha se viu sem suas poucas colônias africanas: o Sudoeste da África, Sudoeste Africano Alemão (Namíbia) e a África Oriental Alemã: Burundi, Ruanda, Tanzânia e parte de Moçambique. Enfim, a Alemanha tinha somente seu território europeu, e ainda sem os territórios que lhe foram tirados pelo Tratado de Versalhes.
Nesse cenário, onde então a Alemanha iria buscar seu espaço vital? O Lebensraum alemão seria buscado no Leste Europeu: Polônia, Países Bálticos, URSS. Mas obviamente havia um problema: esse leste sonhado pela Alemanha era habitado por russos, ucranianos, letões, lituanos, estonianos, judeus, poloneses, bielorrussos, etc. Para driblar esse problema, os nazistas iriam construir uma narrativa para justificar a tomada de terras que já estavam ocupadas por outros povos. E essa narrativa seria o Racismo.

RACISMO - JUSTIFICATIVA PARA COLONIZAR ÁREAS POVOADAS:

O Racismo seria a ideia que iria transformar áreas habitadas como a URSS, a Polônia, os países bálticos em áreas passíveis de serem colonizadas.

"E a ideia que transformava terras habitadas em colônias em potencial era o racismo; e a fonte de mitologias para os racistas nasceu da recente colonização da América do Norte e da África. A conquista desses continentes plasmou a imaginação literária dos europeus da geração de Hitler."
(página 31)

Hitler era um entusiasta das histórias literárias sobre o Velho Oeste americano. A luta do homem branco contra o índio malvado.
Na cabeça de Adolf Hitler, os povos do leste da Europa (poloneses, ucranianos, russos, etc) deveriam ter o mesmo destino que os índios tiveram nos EUA; ou ainda o mesmo destino que os povos asiáticos e africanos tiveram nas mãos dos colonizadores ingleses, holandeses, franceses, belgas, etc.

O RACISMO DE HITLER DIFERIA DO RACISMO DE OUTROS POVOS COLONIZADORES:

O racismo de Hitler era diverso daquele que justificava que ingleses e franceses, por exemplo, colonizassem áreas na África e na Ásia. O racismo de Hitler ia além, pois "Ele via o mundo todo como uma África e todos, inclusive os europeus, em termos raciais. Nisso, como ocorre com frequência, ele era mais coerente que outros. O racismo, afinal, era uma tentativa de julgar quem seria plenamente humano. Dessa forma, as ideias sobre superioridade e inferioridade derivadas da raça podiam ser aplicadas à vontade e segundo as conveniências. Mesmo sociedade vizinhas, que não pareciam muito diferentes da alemã, eram definidas racialmente diversas."
(página 32)

No livro Minha Luta, Hitler deixa claro que era na Europa que a Alemanha deveria procurar áreas para colonizar. A África estava fora de cogitação.

EXPERIÊNCIAS ALEMÃ NA COLONIZAÇÃO:

⏩ No continente africano:

A Alemanha teve colônias africanas:

(a) África Oriental Alemã: atuais Ruanda, Burundi, Tanzânia e parte de Moçambique
(b) Sudoeste Africano Alemão: atual Namíbia

Os alemães procuravam adotar em suas colônias africanas aquilo que eles viam os americanos, nos EUA, fazendo com seus índios. Alemães diziam que os nativos deviam abrir passagem. Miravam-se no exemplo dos EUA, na forma como estes tratavam seus indígenas (extermínio ou confinando-os em reservas).

⏩No continente europeu:

A Alemanha já tinha experiência em lidar com colônias no leste da Europa. Com as partilhas da Comunidade Polônia/Lituânia no século XVIII, uma parte desta coube à Prússia. Em 1871, com a Prússia liderando a unificação alemã sob a dinastia Hohenzollern, essa parte da Polônia foi anexada ao Império alemão. Os alemães já viam esses poloneses como sendo inferiores a eles. Uma parte da literatura alemã os tratava como 'pretos'. Bismarck tentou submetê-los, por meio da Kulturkampf, uma campanha contra a Igreja Católica, cujo principal alvo era pôr fim à identidade polonesa. Houve ainda campanhas de colonização subsidiadas pelo Estado.

OS ALEMÃES JÁ TINHAM SENTIDO O GOSTO DE TER UMA EXPANSÃO PARA O LESTE:

Com o Tratado de Brest-Litovsk, assinado entre a Alemanha e os bolcheviques, a Alemanha teve grandes ganhos territoriais no leste. Com esse tratado, as áreas de influência ou ocupação da Alemanha e das Potências centrais abrangiam os países bálticos, a Ucrânia, a Bielorrússia e a Polônia. Odessa, Kiev, Varsóvia, Riga, Vilnius, Tallinn/Reval, Minsk, Crimeia, etc, estavam ocupadas ou sob influência alemã e das Potências Centrais.
A Ucrânia iria fornecer alimentos para o esforço de guerra alemão (Paz do Pão, de 1918). Pelo menos esse era o desejo alemão, que não final não se concretizou, em razão da oposição exercida pelos camponeses ucranianos e pelos políticos ucranianos, que agora governavam a recém-criada República Nacional da Ucrânia, que ficava na zona de influência alemã.
Com o fim da guerra e a derrota para os Ingleses/Franceses/Americanos, a Alemanha e as Potências Centrais tiveram que devolver todos os territórios que tinham ganhado com o Tratado de Brest-Litovsk. Mas esse ganho territorial no Leste ficaria na memória dos alemães. E mais: os alemães não tinham sido derrotados no leste.

"Assim, os alemães puderam pensar que esse novo reino no leste europeu foi abandonado sem nunca ter sido perdido de fato."
(página 33)

OS PRETOS DE ADOLF HITLER SERIAM OS ESLAVOS:

O Lebensraum de Hitler não estava na África, estava no Leste Europeu: Polônia, Rússia, Ucrânia.

Adolf Hitler disse:
👇
"Nosso Mississippi deve ser o Volga (rio russo), não o Níger (rio africano)"
(página 36)

Traduzindo esse pensamento de Hitler:
A Alemanha deveria buscar seu Espaço Vital na Europa Oriental, não mais na África. 
O Rio Volga, na Rússia, seria o limite da expansão alemã no Leste. A referência ao rio Níger, localizado na África, era para dizer que a colonização realizada na África seria transplantada para o Leste Europeu. A referência ao rio Mississippi explica-se pelo fato dele dividir os EUA pelo meio, de norte a sul. Para Thomas Jefferson, um dos pais fundadores do EUA e ex-presidente, os índios americanos teriam que ser expulsos para além do rio Mississippi. Hitler queria fazer o mesmo, mas com os eslavos (eslavos), que seriam expulsos para além do Rio Volga, abrindo espaço para a colonização alemã.
Hitler ainda dizia, sobre os índios americanos:

" 'Quem', pergunta Hitler, 'se lembra dos peles vermelhas?' "
(página 37)

Se os índios americanos peles vermelhas tinham sido esquecidos, os ucranianos, poloneses, russos também poderiam, no futuro, serem esquecidos. 

ÁFRICA, COMO LUGAR, TERIA QUE SER ESQUECIDA. MAS A ÁFRICA, COMO MODO DE PENSAR, SERIA TRANSPLANTADA PARA O LESTE EUROPEU.
👇
A Alemanha não iria colonizar mais a África, mas iria transplantar o racismo, que fundamentou a colonização africana, para o Leste Europeu. Os eslavos do Leste Europeu seriam os novos 'pretos'. 

"...(Hitler) apresentou como inferiores raciais os integrantes do maior grupo cultural da Europa, seus vizinhos do leste, os eslavos."
(página 34)

UCRANIANOS/RUSSOS/POLONESES/BIELORRUSSOS - OS NOVOS 'PRETOS' DE HITLER:

" 'Preciso da Ucrânia', afirmava Hitler, 'para que ninguém mais seja capaz de nos fazer passar fome como na última guerra' "
(página 34)

Hitler ainda dizia:

"Tratava-se de uma questão de justiça natural: É inconcebível que um povo superior (o alemão) deva existir em penúria num solo estreito demais para ele, enquanto massas amorfas que em nada contribuem para a civilização (ucranianos, russos, poloneses, bielorrussos) ocupam infinitas porções de solo que é dos mais ricos do mundo."
(página 35)

Enfim, os eslavos do leste europeu, russos, ucranianos, poloneses, bielorrussos, eram os novos 'pretos' ou 'índios' de Hitler

AO COLONIZAR O LESTE EUROPEU, HITLER IRIA SE DEPARAR COM UM PROBLEMA QUE OS COLONIZADORES NA ÁFRICA NÃO ENCONTRARAM:
Estados que se equivaliam aos da Alemanha, da Grã-Bretanha
   Mas Hitler tinha uma explicação para isso: Esses Estados eram uma farsa, pois os eslavos, inferiores como eram, não podiam governar a si mesmo, de forma que seus Estados eram uma farsa, cuja governação se dava por elementos de fora, os judeus.

O Colonialismo na Europa oriental iria exigir um esforço redobrado por parte dos alemães, pois ao contrário do que aconteceu na África, os alemães iriam se deparar "com entidades políticos muito semelhantes ao Estado alemão. A preocupação de Hitler com a luta racial pela natureza encobria tanto as nações como seus governos. Sempre era legítimo destruir Estados; se fossem destruídos, é porque tinham de sê-lo."
(página 35)

De toda forma, Hitler se negava a ver nos Estados do Leste Europeu entidades que pudessem ser comparadas com a Alemanha, com a Grã-Bretanha.

Para Hitler:

"As raças inferiores em incapazes de construir um Estado."
(página 35)

Índios (Peles Vermelhas, Sioux, Dakota, etc) nos EUA não criaram Estados; tribos africanos não criaram Estados como o da Alemanha. Os eslavos, que eram igualmente inferiores, também não poderiam criar Estados como os da Alemanha, dos EUA, etc.

Dessa forma, pensava Hitler:

"...o que passava por governo era ilusório - uma fachada para o poderio judaico."
(página 35)

"Hitler afirmava que os eslavos nunca governaram a si mesmos. As terras a leste da Alemanha sempre tinham sido governadas por 'elementos de fora'."
(página 35)

Hitler pensava:

"O Império Russo fora criação de uma 'classe superior de uma intelligentsia essencialmente alemã'. Sem essa tradição alemã, 'os russos ainda estariam vivendo como coelhos'."
(página 35)

Para Hitler, a URSS era uma ficção judaica, uma expressão da visão do mundo judaica, que contrariava a ordem natural das coisas. "A ideia do comunismo era simplesmente um embuste que fazia com que os eslavos aceitassem sua nova liderança judaica." (página 35)

Resumindo a narrativa Nazista: os povos do Leste Europeu eram como os pretos da África ou os Índios dos EUA. Eram racialmente inferiores, de forma que não podiam se organizar, não podiam se governar, não podiam criar um Estado para si. Assim, os Estados que existiam no Leste Europeu, como a URSS, eram ficções (gigantes de pé de barro; castelo de cartas), eram uma farsa, pois quem os governava de verdade eram elementos de fora, os judeus.
Destruídos os judeus, os Estados do Leste, vistos por Hitler como "uma frágil colônia judaica" (página 36), seriam facilmente conquistados, pois sobrariam apenas os 'índios' ou 'pretos' (eslavos), que seriam facilmente subjugados, dando acesso ao seu imenso território. A Alemanha então criaria uma nova América (EUA) no leste europeu.

"Derrubando os judeus, que eram os verdadeiros governantes da URSS, sobrariam apenas os eslavos, que seriam enxotados da mesma forma que os índios da América do Norte foram enxotados. Na ecologia de Hitler, o planeta tinha sido espoliado pela presença dos judeus que desafiavam as leis da natureza introduzindo suas ideias corrompedoras."
(página 43)

COMUNISMO:

"O Comunismo era o exemplo mais imediato da afirmação Hitlerista de que todas as ideias universais eram judaicas e todos os judeus estavam a serviço das ideias universais. A proclamada identidade dos judeus com o comunismo - o Mito Judaico-Bolchevista - era para Hitler a prova definitiva da força e da fraqueza dos judeus."
(página 36)

As ideias universais judaica que contrariavam a natureza, como o comunismo, poderiam se tornar destrutivas, caso as massas as adotassem.

MITO JUDAICO-BOLCHEVISTA:

Segundo esse mito, todo judeu era comunista e todo comunista era judeu. 
O Mito Judaico-Bolchevista não foi criado por Hitler.
"A ideia judaico-bolchevista tem uma origem histórica específica: uma extensão do antissemitismo da Rússia oficial, uma adaptação das visões cristãs apocalípticas aos tempos de crise, uma explicação para o colapso da velha ordem (Império Russo), um grito de guerra durante uma guerra civil (Guerra Civil Russa) e uma forma de consolo depois da derrota (tomada bolchevique do poder na Rússia)"
(página 43/44)

A ideia judaico-bolchevique surgiu no decorrer da Primeira Guerra Mundial. A primeira contribuição - involuntária - veio da Alemanha. Como é sabido, a Alemanha iria lutar em duas frentes: frente oeste contra a França/Grã-Bretanha/EUA e frente leste contra o Império Russo. Para vencer a guerra, a Alemanha teria que romper esse cerco. Para tanto, ela teria que se livrar de um dessas frentes (front) de forma rápida, de forma a poder cuidar na sequência de um só inimigo. A Alemanha tentou fazer isso com a França, achando que iria vencer a guerra no oeste de forma rápida, para depois cuidar do Império Russo. Mas a Alemanha ficou atolada nas trincheiras. A França não foi derrotada. Com seu plano fracassado no oeste, a Alemanha se virou para o leste, trabalhando para levar a Revolução para a Rússia. Alemanha transportou o revolucionário russo Lênin da Suíça para a Rússia. Em novembro de 1917, com a sua promessa de Paz e Pão, Lênin tirou a Russia da Primeira Guerra Mundial. De início, isso pareceu uma grande vitória para a Alemanha. O futuro mostraria que não.
Voltando no tempo, a Rússia, de antes da eclosão da Primeira Guerra Mundial, era habitada por um grande número de judeus. Havia mais judeus vivendo no Império Russo do que em qualquer outra parte do mundo. Mas isso não significava que os russos fossem tolerantes, muito pelo contrário. O antissemitismo era a regra no Império Russo. Os judeus eram vítimas de preconceito oficial e de pogroms. Os judeus viviam ali por falta de opção. O judeu que via uma chance de emigrar, o fazia. Esses judeus russos viviam na parte ocidental do Império, justamente na área na qual seriam travados os combates durante a Primeira Guerra Mundial. E quando as tropas russas entraram no Império Habsburgo, se depararam com judeus proprietários de terras, que foram prontamente expropriadas.
Quando os Russos começaram a perder a guerra, começaram a sofrer reveses no enfrentamento dos Alemães e do Império Habsburgo, culparam os judeus por sabotagem. Em épocas de crise, as minorias sempre sofrem.

"Naquele mês (janeiro de 1915), o exército imperial russo expulsou centenas de milhares de judeus de quarenta cidades próximas de Varsóvia. Poloneses locais tomaram as propriedades dos judeus e ficaram com elas."
(página 40)

Conforme o exército alemão avançava para o leste, mais o Império Russo jogava a culpa nos judeus. Russos culpavam uma certa 'oligarquia judaica internacional' pelas derrotas russas no campo de batalha. 500 mil judeus foram expulsos de suas casas, sendo deportados sob a acusação serem potenciais colaboradores dos invasores alemães.
Quando veio a Revolução de 1917, num primeiro momento, em fevereiro de 1917, os judeus "foram formalmente emancipados e tornaram-se cidadãos." (página 40)

Em novembro de 1917, com a tomada de poder pelos Bolcheviques, grande parte dos judeus se uniu ao movimento liderado por Lênin.

"A partir de novembro de 1917, os judeus de repente passaram a ser membros de pleno direito de um novo Estado revolucionário, e não mais uma minoria religiosa reprimida num império."
(página 40)

Mas nem tudo eram flores para os judeus na Russa revolucionária. O preconceito contra os judeus era muito arraigado entre o povo russo. Judeus que tentavam retomar seus bens expropriados pelo Império Russo não conseguiam fazê-lo, pois os novos ocupantes desses bens não devolviam o que tinham ganho ou tomado. De toda forma, a ideologia internacionalista do movimento revolucionário fazia esforço para deter o antissemitismo russo.
Em meio à guerra civil que se seguiu à tomada de poder pelos Bolcheviques, os contrarrevolucionários (exército branco) passaram a usar o antissemitismo russo como bandeira contra os bolcheviques. Foi aqui que o mito Judaico-Bolchevique foi criado, num processo de amálgama entre o natural antissemitismo do povo russo com a ideia de que os ateus comunistas/bolcheviques eram a representação do Satã Moderno.
A ideia Judaico-Bolchevique chegou à Alemanha, a Hitler, por meio de Erwin Scheubner Richter e Alfred Rosenberg. Scheubner Richter e Alfred Rosenberg tinham morado na região do Báltico, durante o domínio do Império Russo. Com a queda do Império Russo, eles emigraram para a Alemanha.

"O mito judaico-bolchevique era a peça que faltava para completar o esquema de Hitler, unindo o regional ao planetário, aliando a promessa de uma guerra colonial vitoriosa contra os eslavos a uma gloriosa guerra anticolonial contra os judeus."
(página 44)
observação: dizia-se 'guerra anticolonial contra os judeus' porque na cabeça dos nazistas os governos do leste europeu, como por exemplo, a URSS, estariam nas mãos dos judeus. Esse pensamento nascia do preconceito em relação ao povo eslavo que, por ser considerado racialmente inferior, não teria capacidade para governar a si mesmo. Esse pensamento ainda nascia da ideia da existência de um poder judeu, que se fazia presente por meio do poder financeiro espoliador, das ideias universais/corrompedoras (comunismo) criadas por ele.

"Algumas ideias (dos defensores do mito judaico-bolchevique) foram tirados do livro 'Os Protocolos dos Sábios do Sião'. Aparentemente, a suposta existência de uma potência global judaica explicava a dupla catástrofe da revolução (comunista) e da derrota militar (derrota do Império Russo na Primeira Guerra Mundial)
(página 41)

Dessa forma, tentou-se passar a ideia de que a derrota do Império Russo, a queda da Dinastia Romanov, que governava a Rússia desde o início do século XVII, e a subsequente Revolução Comunista eram obras de um grupo identificável que deveria ser punido. Esse grupo eram os judeus.

Resumo do Capítulo:

Busca da Segurança Alimentar, de um maior conforto para as famílias alemãs e da luta racial incessante pela sobrevivência física ⏩ Lebensraum Espaço Vital Busca por Extensas Áreas Agricultáveis no Leste Europeu ⏩Leste Europeu habitado por eslavos, considerados pelos nazistas como racialmente inferiores. Os eslavos, para os nazistas, era como 'pretos' africanos e 'índios' americanos ⏩Estados Eslavos (URSS) eram uma farsa, pois povos inferiores não podiam governar a si mesmos, de forma que eram governados por elementos de fora, os judeus ⏩Ideia Judaico Bolchevique A visão do judaísmo como um poder criador de ideias universais, como o comunismo, e força colonizadora de áreas no leste europeu⏩Para conquistar a URSS, bastaria derrotar os judeus, que o Estado comunista cairia como um castelo de cartas. O Leste europeu seria a construção de um novo 'oeste americano' na Europa


ANOTAÇÕES EXTRAÍDAS DO LIVRO "TERRA NEGRA, O HOLOCAUSTO COMO HISTÓRIA E ADVERTÊNCIA, TIMOTHY SNYDER, EDITORA COMPANHIA DAS LETRAS, capítulo 1, Espaço Vital, páginas 27/45