BRASIL:
Nos séculos XVI/XVII, Frei Vicente do Salvador, via nesse nome algo de profano e vulgar. Ele preferia a denominação Província Santa Cruz.
A escolha pelo nome de Brasil ou Santa Cruz marcava a distinção entre o elevado e o vulgar, característica da Idade Média adotada pelo Frei Vicente do Salvador. No início, o nome Brasil era usado apenas na linguagem oral, pelas pessoas comuns. Já o nome Santa Cruz era usado em livros.
Mas com o passar do tempo, para desgosto de Frei Vicente do Salvador, o nome Brasil passou a ser usado até em livros, borrando "essa distinção entre o digno e o vulgar." (página 59). Até Frei Vicente teve que se render e passou a usá-lo, inclusive na frase que encabeça essa publicação.
Com efeito o nome Brasil tornou-se comum em livros que exaltavam as possibilidades de se enriquecer nessas terras. Esses livros relatavam histórias de um lugar no qual você chegava pobre e tinha a oportunidade de ficar rico, mudando sua condição social. Esses livros passavam a ideia segundo a qual por meio de um empreendimento individual, você poderia deixar sua condição de nascimento, alcançando um novo status social. Quem chegava ao Brasil, o fazia para buscar "remédio para a pobreza." (página 59/60).
Livros que contavam histórias sobre a riqueza do Novo Mundo proliferavam pela Europa, como por exemplo 'Novus Mundus', de Américo Vespúcio, lançado em 1506 (página 60).
A América então não seguiria "o imutável padrão da vida medieval." (página 60)
FREI VICENTE DO SALVADOR:
Ele adotou o modo de pensar de seus contemporâneos medievais europeus. Buscava separar o vulgar do digno, o elevado do baixo, a nobreza do povo. Para Frei Vicente, o vulgar era o habitante dessa terra que usava o nome Brasil para denominá-la. O digno e o elevado era o nobre Português, os "grandes conquistadores de terras." (página 57)
Na frase que foi colocada em destaque no início dessa postagem, Frei Vicente fala "Da largura que a Terra do Brasil tem para o sertão eu não trato..." (página 57). Mesmo usando o nome Brasil, ele nunca o aceitou. Foi obrigado a usá-lo pois todos passaram a usá-lo. Ele preferia Santa Cruz. Frei Vicente do Salvador acreditava que a troca do nome Santa Cruz por Brasil tinha sido obra do demônio, que tirou a cruz do nome para arranjar um nome derivado "de um pau de cor abrasada que há muito nesta terra e com que se tinge os panos." (página 61)
Portanto, na cabeça de Frei Vicente do Salvador, por obra do demônio, o pau-brasil tinha tirado a cruz do nome do território que viria a ser conhecido como Brasil.
Frei Vicente criticava todos aqueles que usavam o nome profano Brasil no lugar de Santa Cruz. Criticava até o rei por usar o nome Brasil quando se referia aos seus domínios ultramarinos. Criticava também as pessoas que aqui viviam e que igualmente só faziam uso do nome Brasil. Esses últimos eram chamados de 'povoadores', retratados de forma negativa. Frei Vicente dizia que esses 'povoadores' queriam levar tudo o que adquiriam para Portugal:
"...tudo pretendem levar para Portugal."
(página 62)
"Ainda os que cá nasceram não são senhores, mas usufrutuários que desfrutam e deixam a terra destruída. Donde nasce também que nenhum homem nesta terra é repúblico, nela zela ou trata do bem comum, senão cada um do particular."
(página 62)
Mas o desprezo que Frei Vicente tinha pelo vulgar, pelo baixo iria além.
OS NOBRES PORTUGUESES, GRANDES CONQUISTADORES DE TERRAS, NÃO TINHAM PENETRADO PELO INTERIOR (SERTÃO) DO BRASIL:
Em sua frase, Frei Vicente do Salvador disse: "Da largura que a terra do Brasil tem para o sertão eu não trato, porque até agora não houve quem andasse por negligência dos portugueses, que sendo grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas,..." (página 57)
Na cabeça de Frei Vicente o interior (sertão) do Brasil estava intocado. porque os portugueses, grandes conquistadores de terras, os nobres, os elevados, ainda não a tinham tocado, razão pela qual ele, Frei Vicente, não iria escrever sobre esse interior, sertão. Essa visão elitista de Frei Vicente escondia o fato de que o interior do Brasil já era explorado. Mas era explorado por um tipo de gente que era desprezado por Frei Vicente, de forma que ele não iria tratar dessa exploração, ignorando-a.
"De fato era - mas apenas pelas pessoas de qualidade, os 'portugueses' do 'Brasil' - os nobres, da esfera elevada que era a única (fonte) relevante para o historiador." (página 64)
Enfim, esses nobres da esfera elevada desconheciam o interior do Brasil, de forma que esse assunto deveria ser ignorado pelos escritos de Frei Vicente do Salvador.
AVANÇO PELAS PESSOAS NÃO ELEVADAS PELO INTERIOR DO BRASIL:
Da Bahia, desde a década de 1570, havia incursões pelo vale do Rio São Francisco. Desde o início do século XVII, o interior nordestino era usado por criadores de gado. Moradores de São Paulo também procuravam desbravar o interior.
"Em 1585, Jerônimo Leitão chegou ao rio Iguaçu, no atual Paraná."
(página 65)
Incursões paulistas ainda alcançaram a foz do rio Tocantins, na primeira década do século XVII.
Observação: O Caranguejo mencionado pelo Frei Vicente do Salvador foi interpretado nesse livro como sendo representativo de um historiador que procura ignorar o conhecimento pelas pessoas de baixo, os analfabetos, aquelas pessoas que não pertenciam à nobreza, aqueles brasileiros que, por exemplo, criavam gado no interior do nordeste. Dessa forma, o historiador, assumindo o papel de um caranguejo, "...só pode afirmar sobre 'Brasil" aquilo que sabem alguns viventes, dos estreitos limites litorâneos..." (página 63)
No litoral do Brasil estavam os conquistadores portugueses, que por negligência não foram para o interior. E somente eles, pelo entendimento de Frei Vicente, poderiam produzir conhecimento sobre o Brasil. Enquanto esses nobres portugueses se restringiam ao litoral, havia os 'povoadores', aqueles que se aventuravam pelo interior do Brasil, caracterizados por Frei Vicente como destruidores da terra, cuja experiência não servia para um estudo histórico.
Pensando dessa forma, Frei Vicente do Salvador não reconhecia a igualdade substancial entre as pessoas que habitavam aquilo que viria a se tornar o Brasil moderno.
ANOTAÇÕES EXTRAÍDAS DA LEITURA DO LIVRO "NEM CÉU NEM INFERNO, ENSAIOS PARA UMA VISÃO RENOVADA DA HISTÓRIA DO BRASIL, EDITORA TRÊS ESTRELAS, Frei Vicente do Salvador e Caranguejo original.
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